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Pediram socorro até a última hora

O Globo, O País, p. 3
31 de Mai de 2011

Pediram socorro até a última hora
Familiares de ambientalistas mortos no Pará reclamam de omissão de autoridades

Fábio Fabrini

Integrando agora uma força-tarefa para descobrir os matadores dos ambientalistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, as polícias Civil do Pará e a Federal deixaram de lado, antes do assassinato, denúncias feitas pelo casal, constantemente ameaçado por grileiros e desmatadores da região. A reclamação foi feita por familiares e amigos dos dois ambientalistas. Reunidos ontem para homenagear o casal, morto numa emboscada na última terça-feira, parentes e amigos disseram que os episódios foram relatados inúmeras vezes, mas ficaram sem investigação. Nos últimos 15 anos, 14 pessoas ameaçadas de morte no Pará por conflitos agrários foram assassinadas por ano no estado, em média.
- A minha maior dor é que tudo (as ameaças) foi oficializado na Polícia Federal, no Ministério Público e em outros órgãos. Pediram socorro até a última hora, e não houve investigação - lamentou Laísa Santos Sampaio, de 45 anos, irmã de Maria do Espírito Santo, durante cerimônia religiosa pelo sétimo dia da morte.
Por ordem do governo, a Polícia Federal está em Marabá ajudando na investigação dos assassinatos e da suspeita de participação de ao menos três possíveis mandantes. Os policiais federais destacados para a investigação ouviram até agora 50 pessoas, na maioria vizinhos e parentes das vítimas, que recontaram a crônica da violência em torno do assentamento Praialta-Piranheiras. Uma das suspeitas é do envolvimento de um grileiro que há alguns meses teria mandado atear fogo em residências e destruir plantações de assentados que, sob a liderança de José Cláudio e Maria, resistiam em sair da área. Ele teria comprado títulos que, supostamente, dariam direito aos terrenos, mas o casal se mobilizou para evitar a retirada dos moradores.
- Os barracos foram reconstruídos, e eles se mantiveram no local - conta uma das testemunhas ouvidas pela PF.
Ontem, no fim do dia, uma denúncia anônima avisou que os pistoleiros podem ter escapado para fazenda no município vizinho de Jacundá. José Cláudio estaria apoiando a ocupação de terras de um produtor rural da cidade. Outra linha de investigação é sobre um fazendeiro que vinha retirando madeira ilegalmente no assentamento, denunciado pelo ambientalista, que fotografava os caminhões de desmatadores e encaminhava as imagens para órgãos de investigação.
- Para intimidar, os caminhões andavam com segurança armada. O dono da carga avisou que ninguém iria impedi-lo de tirar a madeira - relatou outra fonte ouvida pelos policiais.
Frequência de ameaças aumentou em março
O nome de José Cláudio estava inscrito no Caderno de Conflitos Agrários da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Pará. No ano passado, entrou o de Maria. Outros dois assentados ligados ao casal também constam da lista de marcados para morrer. Em palestras e depoimentos públicos, os ambientalistas também relataram sua situação. Pessoas próximas às vítimas contam que, desde março, as ameaças ficaram mais frequentes.
Há algumas semanas, o ocupante de um veículo atirou contra a casa de José Cláudio e Maria à noite. Ela estava sozinha com o sogro e, desesperada, telefonou para a irmã Laísa.
- A voz dela ainda ecoa. Ela dizia: "maninha, não tem jeito. Eles vão acabar comigo" - relata Laísa, acrescentando que, sem proteção, Maria chegou a cogitar vender as terras, mas esperava que elas fossem compradas por alguém que levasse adiante o trabalho de preservação.
No sábado anterior ao crime, o clima era tenso. Um parente do casal viu uma caminhonete e uma moto rondando a casa. Os assentados dizem que algumas ameaças chegaram a ser feitas em público, num bar frequentado tanto por pequenos quanto por grandes produtores.
- Um deles (que mandou atear fogo nas casas) reclamou que até poderia perder as terras, mas que matava o José Cláudio - conta uma moradora.
As polícias Civil e Federal informam que, por ora, não é possível fazer ligação entre a morte do casal de ambientalistas e a de Erenilton Pereira dos Santos, cujo corpo foi encontrado com tiros no sábado. A suspeita é de que o crime esteja ligado ao tráfico de drogas. Erenilton foi um dos que viram uma moto vermelha, com dois homens suspeitos de participar do crime, passar próximo ao local da emboscada. Porém, um deles chegou a conversar com outra testemunha, que estava perto do assentado.
Para os investigadores, é improvável que os assassinos tenham voltado dias depois apenas para eliminar uma testemunha que os viu de capacete. E, ainda assim, deixar viva a que teve contato mais direto com eles. Os dois homens, um deles descrito como negro, portavam uma bolsa comprida e pediram informações sobre como chegar ao Porto do Barroso, uma das saídas por rio da região. Erenilton foi morto perto dali, uma área de intenso tráfico, segundo os policiais, inclusive com plantações de maconha. A família da vítima nega que ele tenha envolvimento com drogas.
Apavorados, parentes de Maria e José Cláudio deixaram o assentamento sem data para voltar.
- Estão todos com medo de serem os próximos, pois eles têm muita informação - justificava ontem, na porta do cemitério, Luciano Santos de Souza, de 19, sobrinho do casal.
Laísa carregou até os animais de estimação:
- Não volto tão cedo. Ficou só o gado. Tenho medo e não consigo conviver com a lembrança. Minha irmã dizia que, enquanto uma castanheira estivesse de pé, derramaria seu sangue por ela.
O irmão de Maria, Domingos da Silva Alves, de 57, se apressou ontem para produzir duas cruzes de madeira, cravadas pouco antes da cerimônia diante dos túmulos:
- Eles contavam muita coisa, que estavam ameaçados, podiam morrer a qualquer momento. Achava que iam apenas assustá-los, mas não matar - lembrou.

'A gente está correndo risco, em constante ameaça'

Em depoimento ao jornalista Felipe Milanez, também gravado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), a ambientalista Maria do Espírito Santo disse no fim do ano passado, em tom quase profético, "ter a impressão" de que seria morta com o marido, José Cláudio da Silva. Em pouco mais de uma hora de conversa, ela deixou claro ter a exata noção dos riscos que corria, citou a Irmã Dorothy Stang, também morta numa emboscada no Pará, em 2005, e afirmou-se escudar na CPT para evitar uma tragédia. Leia alguns trechos:

" A gente está correndo risco mesmo, em constante ameaça. Não sei nem quando a gente vai poder dizer assim que nós vamos viver".

" A única floresta nativa do município ainda fragmentada é esta. Não sobrou mais nada. Posso morrer, se caso eu estiver junto com ele. Com ele, eu acredito. Eles não me pegam sozinha. Não vão ter coragem de me matar sabendo que a pessoa forte que está ali do meu lado é o Zé Cláudio. Tenho certeza de que eu, sozinha, eles não pegam. Mataram a Irmã Dorothy, mas é diferente. A Irmã Dorothy era uma freira, não tinha marido. Eu tenho marido, com personalidade forte, porque ele já teve, assim, momento de discutir com pistoleiro. Eles não me pegam só, eles só me pegam com o Zé Cláudio. Tenho sempre esta impressão, porque em todos os momentos (de ameaça) a gente estava junto".

" Acontece qualquer coisa, nós vamos para a CPT. Eles colocam logo nos jornais. Com isso, eles têm um pouco de receio. Um dos empresários já disse que o Zé Cláudio ainda não morreu porque está nesta região, porque, se estivesse em outra região, já tinha morrido".

" Essa questão nossa é perigosa. Mexe em muita coisa. É, mexe no bolso. Eles conseguem colocar os trabalhadores contra nós, dizer que as serrarias estão paradas. 'Olha aí o que é que o Ibama fez, trancou as serrarias, como é que o pessoal vai viver?'. Aí o homem falou: 'Isso é só um homem e uma mulher que tem lá que não deixam o povo ter sossego'".

Desde 1996, 212 assassinatos no Pará
Em cada dez mortes em conflitos por terra no estado, sete são na região de Marabá

MARABÁ E NOVA IPIXUNA (PA). Palco do assassinato de 19 sem-terra em 1996, no episódio que ficou conhecido como o massacre de Eldorado dos Carajás, o Pará continuou escrevendo páginas horrendas de violência no campo. De lá para cá, nada menos que 212 pessoas foram assassinadas em conflitos agrários, a exemplo de José Cláudio e Maria do Espírito Santo. Na média, desde 1996, foram 14 execuções por ano. Outras 809 sofreram ameaças de morte. Os dados constam de levantamentos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que avalia a situação na região de Marabá, onde o casal de ambientalistas foi morto, como a pior do estado.
- As pessoas têm a impressão de que, depois de Carajás, a situação melhorou. Não é verdade. Pecuaristas, madeireiros, monocultores exercem uma pressão violenta. A consequência tem sido os mortos - avalia o advogado da CPT, José Batista.
Conforme os relatórios da Pastoral da Terra, 463 fazendas foram ocupadas no estado desde 1996. Nessas áreas, 75,8 mil famílias se instalaram, e 31,5 mil já foram despejadas. Um permanente caldeirão de embates que já resultaram em 799 prisões. Segundo Batista, em cada dez mortos em conflitos no estado, sete são na região de Marabá. Um dos motivos é a avançada devastação na área. Restam muito poucas áreas de florestas, o que aumenta a cobiça pela madeira remanescente.
Além disso, afirma o advogado, a perspectiva de mudanças no Código Florestal favoreceu as derrubadas. O assentamento Praialta-Piranheiras é uma das poucas áreas preservadas na região. José Cláudio e Maria, assim como outros assentados, trabalhavam na produção de açaí, castanha-do-pará, cupuaçu e andiroba, além de plantar e pescar. Rondando áreas cada vez mais devastadas de floresta, a atividade madeireira rende lucros vultosos, apesar dos riscos. Uma castanheira negociada no mercado internacional pode render R$22 mil de lucro. Os galhos finos são transformados em carvão e vendidos à indústria do ferro-gusa. (F.F.)

O Globo, 31/05/2011, O País, p. 3

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