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Pedagogia florestal

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: GRAZIANO, Xico
26 de Set de 2006

Pedagogia florestal

Xico Graziano

O assobio do sabiá laranjeira anuncia o final do inverno. Começou a primavera. Com as chuvas, cresce o otimismo do agricultor. Na agenda do campo, preservar já suplanta devastar. Ainda bem.

As árvores, roupa trocada, se enchem de flores, alegrando o meio ambiente. Brinda-se à estação do verde e cresce o valor da ecologia. Na escola, crianças plantam árvores. Nada mais adequado.

Sobra lição para o produtor rural. Acabou a época do desmatamento. Chegou o momento de investir fortemente na conservação florestal. No passado, derrubar mato era sinônimo de progresso. Hoje, preservar a biodiversidade vislumbra futuro.

Desde os índios, o fogo abria clareira para plantar. Depois, chegou o machado afiado, abrindo alas para a barulhenta motosserra. Durante quatro séculos, certo estava trocar mata virgem por terra arada. Nos anos 1950, em São Paulo, a Secretaria da Agricultura recomendava aos colonos, na fronteira do oeste, a iniciarem sua ocupação limpando as margens dos rios, para afastar o mosquito da malária. Ali morava o perigo.

A História cultiva suas ironias. Hoje, o agricultor está sendo incriminado por aproveitar a beirada d'água. O acerto do passado é o erro do presente. Novos valores se impõem. Gerações de agricultores acostumados a derrubar floresta aprendem a respeitar ecologia.

A mudança, antes de tudo, é cultural, uma transição que exige apoio da sociedade. Na história do ambientalismo brasileiro, os produtores rurais têm sido tratados como inimigos. Não parece boa estratégia. Mais eficaz será construir uma aliança a favor da pedagogia florestal. Ensinar é melhor que reprimir.

O melhor exemplo da necessidade desse entendimento reside na atual discussão sobre o Código Florestal. Na época de sua aprovação, em 1965, se estabeleceu que as propriedades rurais devessem manter, em 20% de sua área, um pedaço de mata nativa. Ninguém sabe ao certo de onde saiu esse número. Mas virou lei.

Na Região Amazônica, fixou-se a maior essa reserva legal, em 50% da propriedade. Depois, em 1996, a manutenção obrigatória cresceu para 80%, exceto nas áreas do cerrado, definido em 35%. Na reserva, permite-se apenas o uso sustentado. Assim manda o figurino florestal.

A agenda preservacionista vai-se impondo e os produtores rurais aceitam recompor as áreas de preservação permanente nas margens de corpos d'água. No território paulista, 130 mil hectares de áreas de preservação permanente foram regenerados na última década. Isso é sensacional.

Na roça, moleque não mata mais passarinho com estilingue. A caça saiu de moda, até porque os bichos quase se extinguiram. E a poluição dos córregos, ao eliminar os peixes, alertou o agricultor, acostumado a pescar lambaris. Ele aprende agora a produzir água limpa.

Para avançar mais, há que destrinchar um grave enrosco, motivo de forte polêmica. Nas regiões de agricultura tradicional, no Sudeste e no Sul, inexiste, na realidade, a reserva florestal. Ocorre que ela foi desmatada antes do surgimento do Código Florestal. Como preservar o que falta?

A recomendação oficial mais elementar manda cercar a área dos 20%, buscando sua regeneração natural. Crescendo o mato, vêm os bichos, nascem arbustos, surgem árvores. Sabe-se lá quanto tempo demora, se é que acontece, a recuperação da mata surrupiada pelos bisavós. Cobras, ratos e aranhas, com certeza, proliferariam.

O ganho de biodiversidade, entretanto, será desprezível. Mesmo com replantio de espécies nativas, não faria sentido ecológico pintar o território com pequenos capões de mato, isolados. Mais recentemente, em face das dúvidas técnicas sobre essa interdição, permite-se que a reserva legal, quando inexistente na propriedade, possa ser compensada em área distante. A idéia é excelente.

Se a floresta foi surrupiada por aqui, que se ajude a conservar por lá. Falta localizar tais matas substitutas, parecendo exagero, como querem os órgãos ambientais, que a "compensação florestal" seja realizada na mesma microbacia hidrográfica. De qualquer forma, a compensação florestal embute custo. O produtor rural teria de comprar, longe, outra terra coberta com mata nativa. Quem paga a conta?

A discórdia poderia ser facilmente encerrada. Basta costurar um acordo entre ambientalistas e agricultores, patrocinado pelo governo, estabelecendo que 20% do território do Estado, e não de cada propriedade, seja preservado. Procedendo-se assim, planejando a recomposição florestal, as áreas ambientais comporiam verdadeiros corredores ecológicos.

São Paulo apresenta 3,46 milhões de hectares com remanescentes originais da vegetação, representando 14% de sua área total. Nesse caso, a tarefa conjunta exige recuperar novo 1,5 milhão de hectares, que deixariam a produção e serviriam à biodiversidade. Em dez anos o assunto estaria liquidado.

Fica bom para o agricultor e melhor ainda para a sociedade. Em vez de exigir, o que dificilmente ocorrerá, que cada agricultor mantenha seu pequeno bosque, isolado, o Estado recupera 20% de cobertura florestal total. A gosto do Ministério Público, um "ajustamento de conduta" acaba a briga entre ambientalistas e agricultores. Todos ganham.

Aristóteles disse que a esperança é um sonho desperto. Isentos de preconceito, eliminado o fundamentalismo teórico, constrói-se uma agenda comum, visando à preservação florestal do País. Se precisar, muda-se a lei. Senão, basta arregaçar as mangas. Difícil?

Primavera significa esperança.
Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98). E-mail: xico@xicograziano.com.br
Site: www.xicograziano.com.br

OESP, 26/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

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