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Paz armada no Para

CB, Brasil, p. 14
22 de Set de 2005

Paz armada no Pará
Morte de Dorothy Stang completa sete meses e situação no estado permanece tensa: 16 pessoas morreram na luta pela terra este ano. Procurador diz que a falta de investimentos pode provocar novos confrontos

Paloma Oliveto
Da equipe do Correio

Passados sete meses do assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, na cidade de Anapu, o Pará ainda é um campo minado, marcado pela tensão constante entre grileiros e madeireiros ilegais e pequenos agricultores. Levantamento do Centro de Documentação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) aponta que 16 pessoas foram mortas em conflitos no campo no estado até meados de julho, quatro a mais do que no mesmo período em 2004. Apesar do alarde em torno do crime, a repercussão internacional não surtiu efeitos dentro do país. Pelo menos na opinião do procurador da República Felício Pontes Jr., que visita a região de Anapu a cada dois meses. Ele esteve lá pela última vez no final de agosto. "Os problemas mais graves dizem respeito à não implantação da reforma agrária na região", afirma.
Em 28 de agosto, um dia depois de ir embora do município, o procurador recebeu a denúncia de que os irmãos Miguel e Francisco Valentino Santos, lavradores do Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança, onde a freira foi assassinada, haviam sido presos arbitrariamente. Ambos foram abordados por três policiais civis que invadiram a casa. Os policiais não tinham mandato judicial. Segundo os irmãos, os agentes estavam acompanhados por capangas do fazendeiro Luiz Ungaratti, considerado um dos principais rivais de Dorothy. Ele briga pela área onde o projeto foi instalado.
Os lavradores também denunciaram que os policiais civis usavam o carro de Ungaratti para levá-los à prisão. Na cadeia, os dois teriam ficado uma noite sentados no chão, algemados e acorrentados a uma mesa. O relato sugere o comprometimento do delegado Luiz Roberto Nicácio. Segundo os irmãos, Nicácio deu duas semanas para a desocupação da "terra do Luiz Ungaratti". O procurador Felício Pontes Jr. enviou ofício ao governo do Pará em 30 de agosto, pedindo uma correição na Polícia Civil de Anapu. Até hoje, não recebeu resposta. A assessoria de imprensa do governo estadual não soube informar ao Correio se o governador Simão Jatene recebeu o ofício, nem se alguma providência foi tomada.
Zona de morte
O levantamento da CPT indica que Anapu e Parauapebas são as cidades paraenses onde houve mais assassinatos. Juntas, os dois municípios registraram até julho oito homicídios de pessoas ligadas à luta pela terra: trabalhadores rurais, sem-terra e sindicalistas. Também houve mortes em Malhada, Salinas da Margarida, Grajaú, Joanésia, Sete Quedas, Aripuanã, Peixoto de Azevedo, Santo Antônio do Levenger, Castanhal, Santarém e São Félix do Xingu. "O que acontece em Anapu não é diferente do que ocorre no resto do estado", destaca o advogado José Batista Afonso, membro da Coordenação Nacional da CPT. "São violências que passam por assassinatos, despejos, ameaças de morte, trabalho escravo, mas o Estado até hoje não desenvolveu uma política séria de combate à grilagem", denuncia.
O procurador da República Felício Pontes Jr. aponta o não cumprimento das metas da reforma agrária pelo governo federal como o principal fator que gera o que chama de "paz armada" no Pará. Ele diz que, aparentemente, a região está mais calma, embora, a qualquer momento, um conflito possa ser deflagrado. "Existe uma discrepância muito grande entre os anúncios de programas sociais feitos em Brasília e o que realmente chega à Amazônia", critica.
O presidente do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart, reconhece que a disputa por terras é um estímulo à violência no campo. E também aponta o ordenamento fundiário realizado pelo governo federal como uma das causas dos homicídios. "A presença do Estado acirra os conflitos ao provocar o ordenamento, pois contraria muitos interesses", acredita.
Segundo Hackbart, depois do assassinato de Dorothy Stang, o Incra já obteve a emissão de posse das glebas de Belo Monte e Bacajá, determinada pela Justiça Federal em Marabá. Sessenta mil hectares na região serão desapropriados para fins de reforma agrária. Ele também diz que os recursos para assistir as famílias cadastradas nos programas já foram liberados para os assentamentos de Virola Jatobá e Esperança. Ao todo, 92 famílias serão beneficiadas com a aplicação de R$ 340 mil para cada gleba.
O presidente do Incra destaca o trabalho de georeferenciamento desenvolvido em conjunto com o Exército. O processo permite o cruzamento de imagens de satélites com mapas cartográficos e títulos de posse de terras, permitindo a identificação precisa das áreas mapeadas. Até agora, cerca de 290 mil hectares de terras públicas federais nos municípios de Santarém, Belterra e Monte Alegre já foram analisados. Com isso é possível detectar se cada área foi ou não grilada.
A meta é identificar 2,5 milhões de hectares até o final do ano. O advogado José Batista Afonso, porém, diz que, na região, os efeitos da medida não foram notados. "Tudo ocorre lentamente. O governo fala do georeferenciamento mesmo antes do assassinato da Dorothy Stang. Mas até agora, não sentimos nenhuma mudança", reclama.

Família cobra do governo
No dia 12 de fevereiro, a freira norte-americana Dorothy Stang, 74 anos, 39 deles vividos no Brasil, foi assassinada com seis tiros à queima-roupa, que atingiram sua cabeça, tórax, abdômen, braço e mão esquerdos. Ela morreu na cidade de Anapu, onde trabalhava na implementação dos Projetos de Desenvolvimento Sustentáveis. Um dia antes do homicídio, a missionária havia se reunido com agricultores do assentamento Esperança, para discutir justamente as ameaças de morte.
Hoje, chega ao Pará David Stang, irmão de Dorothy. Acompanhado pelo cônsul especial de Washington Jeffery T. Hsu, do consultor do caso em Washington, Blake Rushforth, além do advogado Brent N. Rushforth, David vai se encontrar com representantes do Ministério Público Federal, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Na próxima semana, a comitiva chega a Brasília, onde tenta encontro com o presidente do STJ, Edson Vidigal, e com o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. O grupo vai pedir a transferência do caso para a Justiça Federal. Cinco acusados de participação no crime serão julgados em outubro pela Justiça do Pará, na comarca de Pacajá.
Em carta ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, os oito irmãos da freira cobram a federalização do caso. "Ficamos chocados e consternados ao ouvir, em 9 de junho, a decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça rejeitando a federalização. Se esse não é o tipo de caso que merece chegar à esfera federal, não se sabe qual caso o seria, em vista do longo histórico de impunidade no Pará. Será que pode haver alguma dúvida de que o caso de Dorothy diz respeito ao abuso de direitos humanos? Que provas o Pará nos ofereceu de que a justiça será feita? Que apoio o Pará está dando aos pobres e sem-terra?", cobra documento assinado pelos oito irmãos. E lançaram uma cobrança pessoal ao presidente: "Nós o desafiamos a mostrar que o senhor apresentou os melhores argumentos possíveis para defender a federalização do caso de nossa irmã".
De 1985 a 2004, houve 534 homicídios no estado do Pará. Somente dez foram julgados e cinco mandantes e oito executores foram condenados. "A Justiça paraense é conhecida por sua prática da impunidade. Não há punição para quem assassina trabalhadores e militantes da reforma agrária", acusa o advogado José Batista Afonso, membro da Coordenação Nacional da CPT.
Os irmãos da freira também pedem, na carta, ações mais contundentes do governo federal. "Ao mesmo tempo em que nos sentimos reconfortados ao ouvir seu compromisso de castigar os assassinos de nossa irmã e destinar terras aos sem-terra e às áreas de conservação, temos visto muito poucas ações concretas", escreveram ao presidente Lula. A audiência com o ministro da Justiça ainda não foi marcada. Tampouco o encontro com Edson Vidigal. (PO)

CB, 22/09/2005, Brasil, p. 14

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