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Patrimônio imaterial Wajãpi selecionado pela UNESCO

NHII-USP-São Paulo-SP
Autor: Dominique T. Gallois
10 de Nov de 2003

Em 7 de novembro, o diretor geral da UNESCO, Koichiro Matsuura anunciou em Paris a seleção de 28 obras primas do patrimônio imaterial da humanidade, entre elas as "Expressões gráficas e orais dos índios Wajãpi", candidatura apresentada pelo Brasil. Um júri internacional, composto de 18 membros e presidido pelo escritor espanhol Juan Goytisolo, avaliou 56 de um total inicial de 62 candidaturas nacionais e plurinacionais. Entre elas, foram selecionadas 6 obras primas de populações indígenas e afro-descendentes da América Latina e Caribe. A seleção também incluiu este ano 6 manifestações culturais européias, 11 da Ásia e do Pacífico, 3 árabes e 2 africanas.

Trata-se da segunda Proclamação das Obras Primas do Patrimônio Oral e Intangível da Humanidade, que ocorre a cada dois anos, desde 2001. Ao selecionar espaços e expressões orais de excepcional valor, a UNESCO procura estimular os países membros a identificar, reconhecer e proteger a diversidade e a continuidade dessas manifestações culturais. Além desta Proclamação, a UNESCO tem promovido, nos últimos dois anos, uma série de estudos e de debates em torno da noção de patrimônio intangível, ou imaterial, com um foco bem distinto dos instrumentos já existentes de proteção do patrimônio material, que datam da década de 1970. Nesses debates recentes, é dada especial atenção à situação de grupos étnicos e lingüísticos minoritários, cujos riquíssimos patrimônios culturais orais vêm sofrendo restrições no âmbito das interações que todos esses povos mantêm hoje com o mundo globalizado. Espera-se, portanto, que a seleção de uma obra indígena brasileira - a dos Wajãpi que vivem no estado do Amapá - não se limite a um mero reconhecimento por parte da UNESCO e que implique, como declarou o Presidente da organização, num efetivo compromisso do estado brasileiro em pôr em prática um plano de promoção e salvaguarda das formas de expressão culturais deste e de outros povos indígenas do país.

A candidatura dos Wajãpi à seleção da UNESCO foi uma iniciativa do Museu do Índio / Funai e recebeu apoio técnico do Ministério da Cultura. Em dezembro de 2002, as expressões gráficas e orais dos Wajãpi foram registradas como Patrimônio Cultural Brasileiro, pelo Conselho do IPHAN, nos termos do Decreto n. 3551/2000.
Tanto esse registro como a candidatura submetida à UNESCO em setembro de 2002 atendiam à solicitação expressa dos principais chefes e dos professores indígenas, representados no Conselho das Aldeias Wajãpi / Apina, com o qual o Museu do Índio já vinha mantendo parceria desde 2001, no âmbito das atividades de preparação e montagem da exposição "Tempo e Espaço na Amazônia: os Wajãpi". A discussão, nas aldeias, de um plano de ações a ser proposto à UNESCO, assim como a elaboração do dossiê, foram realizadas por pesquisadores do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo / NHII-USP, e com a colaboração dos assessores do "Programa Wajãpi" desenvolvido através da ONG Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena - Iepé.
O Núcleo de Educação Indígena da Secretaria de Educação do governo do estado do Amapá também apoiou a candidatura, no momento de sua apresentação à UNESCO, em setembro de 2002.

A preocupação do Museu do Índio / Funai em não limitar sua ação de promoção cultural à exibição de algumas manifestações culturais dos Wajãpi, numa mostra destinada ao público não-indígena, foi fundamental em todo esse processo. Para os Wajãpi, a experiência desta mostra foi extremamente importante para refletirem sobre o enorme interesse que a difusão de aspectos de sua cosmologia e de seu modo de vida despertava nesse público. Os líderes tradicionais voltaram a discutir em suas aldeias todo um conjunto de problemas relacionados ao desinteresse das jovens gerações pelos conhecimentos orais e pelas formas variadas de transmissão desses saberes - entre elas, a arte gráfica e composição de padrões kusiwar, utilizados para a pintura do corpo e de objetos. Os professores wajãpi em formação decidiram aprender mais profundamente com os mais velhos e vêm procurando alternativas - incluindo uso de tecnologias áudio-visuais - para a valorização desses conhecimentos nas escolas das aldeias. Iniciaram pesquisas e, sobretudo, se mobilizaram para a construção minuciosa e cuidadosa de uma proposta curricular que deve levar em conta não apenas conteúdos, mas as categorias próprias do conhecimento deste povo. Entre 1999 e 2002, foram eles que apoiaram os chefes de aldeia na realização de um diagnóstico socioambiental participativo, que lhes confirmou a riqueza de seus saberes ecológicos e a adequação de suas práticas de manejo para a manutenção da qualidade de vida nas aldeias.

Várias razões explicam porque, entre os múltiplos elementos de seu acervo de conhecimentos e de práticas tradicionais, os Wajãpi escolheram os padrões gráficos kusiwar e os saberes orais associados como o aspecto de sua cultura que desejavam promover através da candidatura submetida à UNESCO. Um dos motivos deve-se à dificuldade que eles vem tendo, nos últimos anos, em proteger esses padrões gráficos de um uso abusivo por parte dos mais variados setores, para fins comerciais ou publicitários. Ao mesmo tempo, interessou aos líderes afirmar a beleza das pinturas corporais - em que se usa urucum, jenipapo e resinas perfumadas - rebatendo assim argumentos de muitos jovens que preferem não usá-las mais para não serem objeto de comentários preconceituosos. Mas é sobretudo porque esse sistema gráfico encerra, de forma exemplar, a capacidade criativa dos modos tradicionais de transmissão de conhecimentos, em que desenho e narrativa se complementam, que as "Expressões gráficas e orais dos Wajãpi do Amapá" se constituíram no complexo cultural escolhido como mote da candidatura.

Essa capacidade de compor padrões gráficos e de compor narrativas transmitidas oralmente, em forma sempre renovada, usando-se padrões e temas constantemente atualizados - pois as expressões tradicionais não são feitas apenas de coisas do passado - demonstram claramente a contemporaneidade dessa cultura indígena. Esse é o grande desafio que esse prêmio, atribuído aos Wajãpi, coloca aos mais diversos setores culturais, indigenistas e políticos do país. Não se trata de parabenizá-los pela sua preocupação em guardar, intocados, ou de "eternizar", elementos de sua cultura, mas de parabenizar este grupo - assim como todos os grupos indígenas - pela sua capacidade de continuar percebendo o mundo à sua maneira, mas sempre integrando objetos e reflexões novas que eles sabem, contudo, transmitir em acordo com modos e valores de sua tradição.

Por isso, a expectativa dos Wajãpi é a de poderem executar o "Plano integrado de valorização dos conhecimentos tradicionais para o desenvolvimento socioambiental sustentável da comunidade Wajãpi do Amapá". Este plano, detalhado no dossiê premiado pela UNESCO, deverá ser colocado em prática através de um conselho de instituições assessoras - entre elas as instituições que já são parceiras do Conselho das Aldeias Wajãpi / Apina, acima citadas. O Plano visa colocar em prática uma proteção eficaz do patrimônio imaterial deste grupo indígena, através de medidas de duas ordens. De um lado, a implementação de campanhas de sensibilização e formação dirigidas aos múltiplos agentes que atuam direta ou indiretamente junto a essa comunidade, para que compreendam e respeitem a riqueza dos conhecimentos veiculados oralmente pelas sociedades indígenas. Trata-se de promover formas de relacionamento e de intervenção adequadas à valorização de patrimônios culturais diferenciados.

O segundo conjunto de medidas foi definido pelos Wajãpi como um programa de múltiplas ações, visando a mobilização de todas as aldeias em atividades de fortalecimento interno das formas de transmissão oral. Por exemplo, está prevista a formação de jovens wajãpi para realizar o inventário e registro do amplo corpus de saberes tradicionais. Será dado continuidade à capacitação dos professores wajãpi, em acordo com os princípios da educação diferenciada já implementados pelo "Programa Wajãpi" do Iepé, em seus cursos de formação. O plano de ação também inclui a promoção da participação dos Wajãpi em todas as ações de gestão dos recursos naturais de sua terra, em acordo com seus modos de ocupação e práticas de manejo, ambientalmente e socialmente sustentáveis, que deverão ser valorizadas pelas agências de assistência e de desenvolvimento que atuam na área.

A inclusão das formas de expressão cultural dos Wajãpi no registro de Obras Primas do Patrimônio Imaterial da UNESCO poderá assim representar uma oportunidade excepcional para revelar e para resolver toda uma série de contradições no trato e na assistência fornecida a este grupo e a muitos outros grupos indígenas da Amazônia. Se por um lado, organizações como a UNESCO se preocupam em promover o valor das tradições culturais de povos indígenas e se a legislação brasileira há muito tempo vem assegurando aos índios o devido respeito à suas formas de ocupação territorial, suas formas de organização sociopolítica, além do seu direito à uma educação diferenciada, ainda é muito problemática a implementação de medidas efetivas nesse sentido.

É por este motivo, certamente, que os Wajãpi escreveram, na carta que irão entregar às autoridades, hoje, no Rio de Janeiro, que: "Nós queremos que os não-índios conheçam nossa cultura para respeitar nossos conhecimentos e nosso modo de vida. Se os não-índios não respeitam nossa cultura, até os nossos próprios jovens podem começar a desvalorizar nossos conhecimentos e modos de vida. Por isso, nós queremos apoio para continuar este trabalho com os nossos parceiros, de formação dos Wajãpi e também de formação dos não-índios para entender e respeitar os povos indígenas".

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