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Passando dos limites

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: HORTA, Luiz Paulo
27 de Out de 2006

Passando dos limites

Luiz Paulo Horta

O planeta está doente. Há muito tempo sabíamos disso - desde pelo menos os anos 70, quando o assunto ecologia invadiu pela primeira vez as páginas dos jornais. Mas agora é mais sério: segundo o Fundo Mundial para a Natureza, estamos consumindo, a cada ano, 25% de recursos naturais além do que a Terra pode repor. O que abre a perspectiva de um colapso geral em 30 ou 40 anos. Como se pôde chegar a esta situação?

O grande vilão, naturalmente, é a civilização industrial moderna, que passou a exigir recursos e a produzir dejetos em escala de fato industrial. Um outro vilão poderia ser a superpopulação. O jinglezinho da nossa seleção de 70 mencionava "90 milhões em ação"; três décadas depois, são 180 milhões.

Mas a origem das coisas costuma estar nas idéias. Um pacto entre o homem e o meio ambiente foi rompido pela Renascença, quando ela decretou que "o homem é a medida de todas as coisas".

A Renascença era jovial e produziu mudanças necessárias. Não se pode parar a História. Mas, naquele ímpeto renovador, foi como se disséssemos adeus a uma antiga aliança. De algum modo, fomos perdendo de vista o papel que cabe ao ser humano neste cosmo desafiador. Era como se, de repente, no palco só contássemos nós mesmos - desaparecendo as espécies animais, vegetais, o ritmo das estações, toda aquela majestosa cadeia que aparece nas primeiras páginas do Gênesis.

Em todas as civilizações - menos a nossa -, um dado de sacralidade presidiu a relação entre o homem e o cosmo. Na Bíblia, isso era definido como o "temor de Deus" - o que não significa ter medo de Deus. Era a noção de que, à nossa volta, há coisas misteriosas que, em mais de um sentido, ultrapassamos. A velha China, que não era teísta, falava do Tao como origem de todas as coisas: "Sem nome, ele está na origem do Céu e da Terra; com um nome, é a Mãe dos dez mil seres" - diz o livro de Lao-Tsé.

Não deveríamos, a partir daí, tentar provar a existência de Deus. Essas coisas não se provam. Mas a sacralidade também pode ter o sentido de um respeito profundo, de uma ética superior. Me lembro de ter lido, há muito tempo, a história dos aborígines australianos - os povos primitivos que a invasão branca acuou a uma estreita franja que circunda o grande deserto da Austrália. Segundo a História (ainda será assim?), esses supostos primitivos vão dando devagarinho a volta no deserto, de modo que, quando terminam o périplo, o que eles consumiram em recursos naturais já teve tempo de se recompor. Grande sabedoria.

É o que se pode encontrar, de um modo geral, no que chamamos de povos primitivos - às vezes não tão primitivos assim, como a pouco conhecida civilização dos índios americanos, que extraía da contemplação da Natureza uma elevada espiritualidade.

Instintos ditos primitivos que fomos perdendo à medida que acelerava o passo a civilização industrial. Não é o caso, aqui, de fazer o processo da indústria, ou da ciência, ou do chamado progresso. Mas o que fica visível - e agora, de maneira dramática - é que fomos perdendo a relação entre a parte e o todo; não por burrice, ou má vontade, mas por aquele velho vício que os gregos antigos chamavam de hybris, e que é um dos nomes do orgulho.

Simplesmente, achamos que podíamos tudo, e que éramos os únicos atores no grande espetáculo da existência. A ciência moderna é algo de admirável; mas ela trata de fatias específicas da realidade. A realidade como um todo, esta, foi deixada a si mesma - até o pesadelo que agora precisamos enfrentar.

Mudar esse rumo exigiria uma atitude de humildade radical, partindo da aceitação de que erramos.

Exigiria uma nova geração de políticos, capaz de falar uma outra língua - e de convencer as pessoas do que estivessem falando.

Hoje, por exemplo, todos eles enchem a boca para falar em desenvolvimento. E, claro, todo mundo quer crescer. Mas, qual desenvolvimento?

Se houvesse um pouquinho de visão de conjunto, seria mais ou menos óbvio que um país como a China tem todas as chances de desembocar, e depressa, num desastre ecológico, à medida que se pede da velha terra chinesa o que ela já não pode dar.

Neste sentido, estamos bem melhor do que eles - inclusive pelo nosso atraso histórico. Quem pode ser contra o desenvolvimento brasileiro? Mas, de novo, qual desenvolvimento?

Ao contrário de muitos países, ainda temos tempo para enfrentar esse desafio - supondo que, enquanto isso, o resto do planeta não vá definitivamente para o beleléu.

Luiz Paulo Horta é jornalista.

O Globo, 27/10/2006, Opinião, p. 7

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