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Passamos do ponto no clima, diz King

FSP, Ciência, p. A21
Autor: KING, David
29 de Mar de 2007

"Passamos do ponto" no clima, diz King
Cientista-chefe do Reino Unido afirma que aquecimento acelerou tanto que Convenção do Clima e Kyoto não servem mais

Físico que aconselhou Tony Blair a eleger efeito estufa como prioridade de governo diz que país pobre precisa de meta de redução de carbono

Claudio Angelo
Editor de Ciência

O Protocolo de Kyoto não serve mais. Se a humanidade quiser lidar com o maior problema já enfrentado pela civilização, o da mudança climática, soluções mais radicais precisam ser tomadas. E isso inclui metas de redução de emissões de gases de efeito estufa até para países pobres, como o Brasil. Quem dá a mensagem é o físico britânico (nascido na África do Sul) David King, 67. Conselheiro científico do premiê Tony Blair, Sir David foi o mentor das decisões britânicas de cortar 60% das suas emissões até 2050 e de fazer do clima uma prioridade de governo.
Ele veio ao Brasil para lançar hoje em Brasília o Ano Brasileiro-Britânico de Ciência e Inovação, no qual será discutida a cooperação para a produção de fármacos a partir da biodiversidade, entre outros assuntos. Mas o cavaleiro de Sua Majestade tem uma outra agenda: preparar o Brasil para a reunião do G8 em junho, na Alemanha, na qual a União Européia pressionará os renitentes Brasil, África do Sul, China, Índia, México e EUA a seguir sua liderança no combate ao aquecimento. "A Convenção do Clima da ONU foi montada sobre a idéia de que precisávamos evitar a mudança climática perigosa.
Nós passamos do ponto de poder evitá-la. O que falamos agora é de evitar a mudança climática catastrófica", diz, com autoridade moral de um país que reduziu suas emissões em 14% em relação a 1990 e cresceu 40% nesse mesmo período. Ontem, dentro de um carro, num engarrafamento em São Paulo, King deu a seguinte entrevista à Folha:

Folha - A última vez que o sr. veio ao Brasil o sr. trouxe uma mensagem de que os gigantes do Terceiro Mundo deveriam se comprometer a metas num regime pós-Kyoto. Como o sr. espera fazer esses países aceitarem essas metas?

David King - "Fazê-los" não é a frase que eu usaria. O que estamos fazendo no Reino Unido é tentar desfazer o nó. Estamos fazendo o G8+5 na Alemanha em junho. No Reino Unido e na UE, estamos nos comprometendo unilateralmente a reduzir emissões em 60% até 2050 no Reino Unido e em 20% até 2020 na UE. Temos um esquema de comércio de emissões funcionando desde 2005. É claro que gostaríamos de ver o comércio de emissões globalizado, mas entendemos os problemas em torno disso. Não estamos apenas dizendo que este é o único jeito de fazer. Estamos dizendo: "Isso é o que nós estamos fazendo, mas o que vocês estão fazendo"?

Folha - Se você falar de metas com o governo brasileiro, eles vão dizer que já estão dando uma enorme contribuição ao reduzir o desmatamento na Amazônia, portanto medidas voluntárias bastariam.

King - E o que nós diríamos é: a sua análise no Brasil do efeito do desmatamento é uma contribuição a emissões que são de cerca de 15% do total global. Há ainda muita contribuição ao nível global do CO2 na atmosfera.
Nós reconhecemos que nossas emissões históricas e nossa economia são diferentes das do Brasil, mas algum tipo de meta precisa ser estabelecido. Estamos defendendo que a meta global seja entre 450 e 550 partes por milhão de CO2 na atmosfera [hoje estamos em 385]. Se pudermos obter acordo internacional para manter o nível global nessa faixa, poderemos aceitar um processo no qual o Brasil ofereça algo diferente dos EUA, por exemplo.

Folha - O Brasil tem sido criticado por se manter pouco pró-ativo e apegado aos princípios da Eco-92, segundo os quais as nações ricas têm mais responsabilidade de agir que as nações pobres. O sr. acha que esses princípios envelheceram?

King - Sim. E, a propósito, os princípios de Kyoto talvez não sejam mais apropriados. Precisamos de uma discussão aberta na qual reconheçamos que o tempo passou e que nossa compreensão do problema avançou. A Convenção do Clima da ONU foi montada sobre a idéia de que precisávamos evitar a mudança climática perigosa.
Nós passamos o ponto de poder evitar a mudança climática perigosa. O que falamos agora é de evitar a mudança climática catastrófica. Estamos numa situação totalmente diferente. A urgência e a magnitude do problema são muito maiores. Precisamos abandonar nossas velhas posições e discutir o maior problema -eu não estou exagerando- que nossa civilização jamais precisou enfrentar.

Folha - Por que o sr. acha que a mudança climática de repente ganhou tanta publicidade?

King - A evidência científica tem se acumulado semanalmente. Se você olhar para o verão de 2003 na Europa Central, a análise mostrou que, se a curva de temperatura fosse uma linha reta, aquilo já seria um evento que só ocorre a cada mil anos. Mas a linha não é reta, ela é ascendente. O verão médio hoje na Europa é tão quente quanto o mais quente do século 20, o de 1947. A outra questão é que o governo britânico, ao propor em 2003 uma meta de 60% de redução de emissões em 2050, levantou muita curiosidade. Nós levantamos o perfil da questão. Espero que não seja só um modismo.

Folha - Mas houve uma "bolha" dessas em 1992.

King - Mas há uma diferença importante agora: o setor privado está se preocupando com isso. E, quando eles resolvem investir dinheiro, é porque o assunto é sério.

Folha - O Reino Unido conseguirá reduzir suas emissões em 60% sem o uso maciço de energia nuclear?

King - Não. Precisaremos de mais uma geração de novas usinas nucleares para chegar lá.

Folha - O sr. é a favor?

King - Eu estou aconselhando o governo de que nós precisamos dela. Temos problemas que todos entendemos: o urânio vai ficar escasso, temos a proliferação nuclear, o lixo nuclear, mas dados todos esses problemas e a magnitude do problema maior da mudança climática, nós precisamos disso. É por isso que eu falo de mais uma geração, porque precisamos de tempo antes que novas tecnologias, como a fusão nuclear, possam chegar ao mercado. Precisaremos substituir todos os nosso reatores até 2030. E, mesmo até 2020, precisaremos trocar 80% dos nosso reatores. Se o Parlamento aprovar, será um programa grande.
Na internet - Leia a íntegra da entrevista www.folha.com.br/070871

FSP, 29/03/2007, Ciência, p. A21

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