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Páscoa, a vitória da vida

FSP, Tendências / Debates p. A3
Autor: HUMMES, Dom Cláudio
11 de Abr de 2004

Páscoa, a vitória da vida

Dom Cláudio Hummes

A Páscoa nos anuncia a passagem da morte para a vida, a ressurreição. Anuncia que a última palavra será da vida, e não da morte. Não como mera promessa, mas como algo que já aconteceu em Jesus Cristo. A humanidade de Jesus já fez essa passagem definitiva, tornando-se desse modo penhor da nossa futura ressurreição. Esse é o conteúdo central da fé cristã. Cristo ressuscitou dos mortos e nós, se nele crermos, formos batizados e o seguirmos fielmente nesta vida terrena, também com Ele ressuscitaremos para a vida eterna e feliz junto de Deus.
Quando o apóstolo Paulo falou sobre a ressurreição de Cristo e dos mortos aos cidadãos de Atenas, estes, céticos, disseram-lhe com ironia: "Sobre isso te ouviremos num outro dia" (Atos dos Apóstolos, 17, 32). Também hoje, na cultura pós-moderna, o ceticismo e o agnosticismo são freqüentes. Trata-se do chamado pensamento "débil", desencantado da verdade, desiludido com o fracasso das grandes ideologias que se apresentavam como verdades universais. O pensamento débil, pouco exigente, avesso a toda verdade universal e fundante, sorri cético, ainda que tolerante. Mas, com certeza, o ceticismo gera um sabor frustrante e contradiz a aspiração profunda do ser humano.
Cristo ensina que veio para que todos tenham vida e a tenham em abundância. Essa representa a verdadeira aspiração do espírito humano. Sede e fome de vida plena. Nós, que cremos em Deus, sabemos ter sido ele quem semeou tal aspiração no coração humano, não para frustrá-la, mas como sinalização do que um dia se realizará, porque Deus nos ama e fará tudo para não nos deixar perdidos na morte. O amor vence a morte.
Neste contexto pascal, que o período da Quaresma prepara durante 40 dias, a partir da Quarta-Feira de Cinzas, a Igreja Católica no Brasil realiza anualmente a Campanha da Fraternidade. Em geral, seleciona como objetivo ou tema um problema social urgente, que afeta a qualidade de vida da sociedade como um todo, mas principalmente aflige a vida dos mais pobres. Neste ano, o tema foi a água, fonte de vida.
Cresce em âmbito mundial a opinião de que num futuro não longínquo eclodirá uma grande crise de água, se não se tomarem medidas urgentes para o desenvolvimento de uma cultura de maior respeito pela água e para uma melhor administração do patrimônio hídrico do planeta. Isso é tanto mais urgente e determinante porque a água é essencial para a vida humana. É fonte de vida.
Talvez não se trate ainda de escassez de água, mas certamente de má gestão das águas por parte da sociedade. Urge antes de tudo preservar melhor a água. A contaminação de nossos rios, lagos, nascentes e mesmo dos oceanos cresce assustadoramente. Joga-se ali todo tipo de lixo, esgoto, resíduos industriais e até mesmo hospitalares, agrotóxicos, substâncias químicas infectantes, enfim, todo gênero de poluentes. Aliás, o problema não é só o lançamento direto desses poluentes nas águas, mas também todo lixo que não se recolhe e trata, mas joga-se fora sem cuidados, assim como os agrotóxicos usados nas plantações -se não houver uma forma de os conter, a água das chuvas os vai carregando até que cheguem aos rios, lagos e oceanos.
Do mesmo modo, trata-se de preservar ou replantar as matas ciliares, isto é, as matas que margeiam os rios, lagos e nascentes. Elas evitam a demasiada evaporação das águas da chuva e permitem, assim, que elas penetrem no solo e cheguem aos lençóis freáticos, de onde brotarão nas nascentes e fontes que formam os rios. Onde está a maioria das matas e vegetação ciliares de nossos rios, com exceção dos rios amazônicos? E mesmo lá o desmatamento cresce velozmente.
Além da preservação das águas, é necessária a economia no seu uso. O desperdício, o esbanjamento, como se estivéssemos diante de algo inesgotável e de fácil acesso a todos, torna ainda mais urgente e grave a questão das águas. O que desperdiçarmos faltará a outros. A economia no uso da água acaba sendo um ato de justiça, pois, sendo a água necessária para viver, ela é direito de todos.
Segundo a ONU, no mundo "cerca de 1,2 bilhão de pessoas não tem água de qualidade para beber e 2,4 bilhões não têm serviços sanitários adequados" (Texto-Base da Campanha da Fraternidade, pág. 16-17). Segundo dados da Organização Pan-americana de Saúde (Opas), no Brasil, "20% da população não tem acesso à água potável, 40% da água das torneiras não tem confiabilidade, 50% das casas não têm coleta de esgotos e 80% do esgoto coletado é lançado diretamente nos rios, sem nenhum tipo de tratamento" (idem, pág.17). A ONU estima que, se não forem tomadas medidas urgentes que revertam a situação, no ano 2050 faltará água potável a 40% da humanidade. Mas há especialistas que antecipam esse prazo para 2025 (cf. idem, pág. 28).
Finalmente, outra grande tarefa na área do patrimônio hídrico é mantê-lo como patrimônio de todos, patrimônio público, e não permitir que dele se apropriem privilegiadamente pessoas ou empresas particulares, que depois transformarão a água em mercadoria.
As questões relativas à água são questões de vida humana e de vida de todos os seres vivos do nosso planeta. São questões de direito e, portanto, de justiça e de ética. Questões de possibilidade de vida e de sua qualidade. Essas questões têm tudo a ver com a fé pascal dos cristãos e sua concretização inicial nesta vida terrena, que deve culminar com a ressurreição.

Dom Cláudio Hummes, 69, é cardeal-arcebispo metropolitano de São Paulo. Foi arcebispo de Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).

FSP, 11/04/2004, Tendências / Debates p. A3

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