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A parte do fogo

FSP, Mais, p. 6
Autor: LEITE, Marcelo
30 de Jan de 2005

A parte do fogo

Marcelo Leite
Colunista da Folha

Não foi à toa que o fogo se tornou símbolo da humanidade, da fábula de Prometeu ao filme "A Guerra do Fogo" (Jean-Jacques Annaud, 1981). Talvez tenha sido a primeira tecnologia, permitindo-lhe domar a paisagem, antes mesmo da agricultura -como ferramenta para caçar e abrir caminhos. O que não se sabia é que ele pode ter mudado a face do planeta inteiro.

A pressão das chamas sobre as florestas começou muito antes que qualquer Prometeu andasse sobre a Terra

Como seria a cobertura de vegetação da Terra se não houvesse fogo? A pergunta foi lançada pelo grupo de William Bond, da Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul). Ela surgiu da constatação de que não há correspondência plena entre vegetação e clima globais (há menos florestas do que seria possível) e da hipótese de que incêndios repetidos poderiam explicar essa discrepância. Em artigo no periódico "New Phytologist", eles concluem que é mesmo uma boa explicação.
Bond recorreu aos computadores. Há muito eles são usados para modelar a paisagem e a geografia globais, mas em sentido abstrato: simular o clima futuro. Uma ferramenta desses programas são os modelos dinâmicos globais de vegetação (MDGV). A vegetação influencia o clima, ao absorver radiação solar, ou ao devolver umidade para o ar. E também é afetada por ele, pois florestas não vicejam onde há poucas chuvas.
Em muitas áreas, como partes das savanas na África e na América do Sul (cerrado brasileiro), há precipitação suficiente para sustentar florestas. Predomina aí, no entanto, uma vegetação mais baixa, resistente ao fogo. Não por acaso, são regiões onde queimadas são freqüentes.
A turma de Bond "desligou" o módulo de fogo do MDGV e pôs o computador para rodar algoritmos. Chegou ao mapa de uma Terra mais verde: o quinhão de matas fechadas salta de 27% para 56%. No Brasil, quase todo o cerrado vira floresta amazônica.
Embora o fogo seja largamente utilizado por agricultores dos dois lados do Atlântico, Bond tem o cuidado de ressalvar que a pressão das chamas sobre as florestas começou há pelo menos 6 milhões de anos, com incêndios naturais causados por raios. Muito antes, portanto, de qualquer Prometeu caminhar sobre a Terra.
A questão agora é saber se o emprego do fogo pode acentuar ainda mais essa tendência. O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) investiga justamente isso no oeste de Mato Grosso, com o Experimento Savanização: a possibilidade de que a fronteira agrícola (soja e pecuária) deflagre um processo descontrolado de ressecamento da mata de transição que separa cerrado de floresta na região.
Um alerta sombrio veio de outro estudo, chefiado por Gifford Miller (Universidade do Colorado, EUA). Publicado em janeiro no periódico "Geology", afirma que as queimadas dos primeiros humanos na Austrália, há 60 mil anos, diminuíram as chuvas de monção que penetravam de norte para sul no continente. Como resultado, a savana que havia por ali teria cedido lugar a um imenso deserto.
Para garantir a sobrevivência, nada como o fogo do conhecimento.

FSP, 30/01/2005, Mais, p. 6

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