VOLTAR

Para reescrever a história

O Globo, Prosa e Verso, p. 3
Autor: BARRETTO FILHO, Henyo Trindade
06 de Mar de 2004

Para reescrever a história

Henyo T. Barretto Filho

HOJE

O assassinato do índio Xerente Valdes Marinho Lima, 39, servidor da Funai, na segunda-feira de carnaval, com um tiro de espingarda 12 no peito, disparado por garimpeiro, na região do Paapiu, Terra Indígena Yanomami, quando apurava, junto com outros seis funcionários, denúncia de garimpagem ilegal na área, é digno de nota por vários motivos. Em primeiro lugar, por mostrar que, em pleno século XXI, o recurso à execução sumária continua a ser parte do repertório de atitudes da nossa sociedade para com os povos indígenas e os servidores do órgão governamental destinado à sua proteção. Em segundo lugar, pela invisibilidade do episódio na mídia e o desinteresse desta em monitorar suas repercussões, sintoma da dificuldade de lidarmos com este atentado à nossa auto-imagem de cordialidade. Em terceiro lugar, pelo imobilismo da Justiça brasileira e do governo Lula - retoricamente comprometido com grupos historicamente excluídos -, que já creditam em sua conta, com este, mais de 23 assassinatos contra pessoas indígenas nos últimos 14 meses, com baixo registro de apuração e punição dos responsáveis - uma desonra para uma sociedade que se quer moderna e plural, na qual o direito a diferença possa ser vivido. Em quarto - mas não último - lugar, pelo fato de Valdes estar trabalhando na defesa mesma dos direitos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam - sinal de esperança e expressão do protagonismo que pessoas, organizações e povos indígenas têm assumido na sociedade brasileira, conquistando espaços que antes lhes eram vedados.

ONTEM

As estimativas da população indígena nesta parte do continente americano, ao final do século XV, variam entre 1.100.000 pessoas - segundo as expectativas conservadoras do antropólogo Julian Steward - e cinco a oito milhões, conforme cômputo mais recente da arqueóloga Anna Roosevelt. Esta chega a sugerir, baseada em evidências arqueológicas e nos relatos dos primeiros cronistas, que as sociedades de pequena escala que hoje vivem na Amazônia seriam sobreviventes das hecatombes epidemiológica, ideológica - catequese - e sociológica - escravização, sedentarização e recrutamento forçados para as várias tarefas da colonização - que se abateram sobre sociedades de organização social muito mais complexa e demograficamente mais robustas. Por sua vez, avaliações sobre a diversidade sociocultural nativa à época da chegada dos primeiros conquistadores europeus, baseadas no critério lingüístico, estimam em cerca de 1.175 o número de línguas/povos indígenas existentes naquilo que hoje é o território brasileiro - segundo o professor Aryon D. Rodrigues da UnB.

Há meio século, segundo dados do Serviço de Proteção aos Índios reunidos por Darcy Ribeiro para a década de 1950, o contingente indígena estava reduzido a entre 68.100 e 99.700 pessoas e 142 etnias, com perfis demográficos, estruturas sociais e relações de contato com a sociedade nacional muito distintos. Darcy estimava que das 230 etnias ainda existentes em 1900, 87 teriam desaparecido no curto espaço de pouco mais de meio século. A depopulação e o declínio da sociodiversidade nativa, contudo, devem ser postos na conta dos efeitos genocidas da dominação colonial e da expansão desenfreada das frentes econômicas, e não creditados a uma tendência natural de desaparecimento - físico ou cultural - dos povos indígenas no Brasil - como, durante muito tempo, se concebeu o seu destino. Mesmo porque, os mesmos números indicam uma tendência de crescimento tanto da população total, quanto do número de povos: há dez anos, os índios contavam 215 sociedades e cerca de 325 mil pessoas segundo os dados da Funai.

A concepção de que o índio era uma condição transitória a ser inexoravelmente superada pela evolução social natural, bastando para isso que se deixasse o tempo operar tal transformação, fundamentou as variadas formas de tratamento de povos e terras indígenas ao longo do século XX - entre as quais a ideologia e a prática da proteção fraternal rondoniana. Daí porque, ao destinarem-se terras aos índios, imaginava-se que um dia todos se transformariam em trabalhadores rurais nacionais. Assim, se lhes reservavam áreas diminutas, onde se os agrupava em torno de núcleos administrativos e pedagógicos - os postos indígenas -, que, ao abreviar-lhes o caminho para a civilização, liberavam seus territórios tradicionais para a apropriação privada. Este ideário e esta prática ainda espelham os anseios das elites regionais cobiçosas das terras e recursos naturais indígenas, e respondem pela atual agonia dos Guarani em Mato Grosso do Sul, cenário por excelência de tal forma de ação do poder público.

AMANHÃ?

É a resistência Guarani, contudo, ao lado da de outros povos, que expressa o desejo das sociedades indígenas contemporâneas de existirem enquanto tais. Demonstra também a correção dos princípios filosóficos e jurídicos consagrados na Constituição Federal de 1988, que reconheceu aos índios o direito de continuarem a serem índios indefinidamente - rompendo com a concepção evolucionista e o integracionismo anacrônicos das Constituições anteriores, e tratando-os como sujeitos coletivos de direitos especiais, em função de constituírem "grupos formadores da sociedade brasileira" e de participarem do "processo civilizatório nacional". Discriminados positivamente, não é à toa que o mais recente censo revelou a cifra de 750.00 índios - o dobro das estimativas com que se trabalhava até há pouco -, pois foi a primeira vez que se deu a oportunidade aos recenseados de auto-adscrição. Falta à sociedade e ao governo se abrirem para entender plenamente o significado desses sinais, contradizendo definitivamente o destino manifesto de desaparecimento que se traçou em outros tempos para os povos indígenas, para que mais não pereçam pelas armas intencionalmente apontadas para eles pela "civilização".

Henyo T. Barretto Filho é professor do Departamento de Antropologia da UnB, doutor em antropologia social pela FFLCH/USP e secretário da Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

O Globo, 06/03/2004, Prosa e Verso, p. 3

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.