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Para quilombolas, pandemia foi sinônimo de abandono, racismo e necropolítica

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03 de Mar de 2021

Para quilombolas, pandemia foi sinônimo de abandono, racismo e necropolítica
População reclama do abandono do Estado e da falta de políticas de saúde específicas no combate à pandemia em seus territórios

Por Pedrosa Neto
Publicada em 3 de março de 2021
Com Adriana Abreu e Sam Schramski

Moju, Pará - "Nós não estamos tendo acesso nem ao básico para enfrentarmos o coronavírus", relata angustiado Raimundo Magno, líder quilombola da comunidade África, situada no município paraense de Moju. A queixa de Magno aponta para o abandono assistido nas comunidades quilombolas de todo o Brasil durante a pandemia, traduzido na falta de assistência, na ausência de políticas de saúde específicas e na escassez de estatísticas oficiais para a contagem dos casos de Covid-19 entre a população. Depois de meses de agonia, entidades e lideranças brigam na justiça para que o Estado reconheça a vulnerabilidade histórica da população, acentuada com a chegada do novo coronavírus aos territórios.

"Faltou água, comida, médicos, testagem, remédios, máscaras, informação, enfim, faltou tudo", conta Magno. Ele resume o contexto geral das comunidades quilombolas diante da ameaça trazida pela Covid-19. As formas de reprodução da vida desses grupos, cujas origens e resistências remontam o período colonial escravocrata, estão pautadas pela relação direta com a natureza, com a agricultura familiar, com a pesca e com a venda dos excedentes. A necessidade do isolamento desequilibrou a renda das famílias; as produções foram perdidas e a manutenção dos próximos meses também, já que não puderam plantar.

Givânia da Silva, membro da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), conta que com as novas dinâmicas impostas pela pandemia, muitas comunidades enfrentaram a fome, a perda de suas produções e a invasão de seus territórios. Segundo dados da organização, existem cerca de 6.000.000 quilombolas no Brasil, distribuídas em cerca de 5.792 localidades.

"Nossas comunidades estão muitas vezes próximas a grandes empreendimentos de mineração e do agronegócio ou de balneários e praias. Na pandemia, ninguém respeitou nosso isolamento, tivemos mais uma vez que lutar para proteger nossos territórios", afirma Givânia.

Para garantir o mínimo de segurança e isolamento, algumas comunidades apelaram para barreiras improvisadas, mas nem todas tiveram sucesso, enfrentando resistências internas e externas de trabalhadores e comerciantes. Equipes formadas por comunitários se revezavam dia e noite para impedir a entrada de pessoas de fora ou para tentar convencer parentes a não saírem de suas casas para as cidades, mercados e feiras. Quando não conseguiam, distribuíam máscaras, luvas e álcool, insumos obtidos, na maioria dos casos, através de doações de entidades e parceiros.

"A gente teve que lutar muito pra conseguir alguma coisa do estado e, quando veio, não atendeu nem a um quinto das nossas demandas", explica Magno que, como membro da Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo (Malungu), esteve na linha frente na luta por direitos das comunidades quilombolas do estado do Pará.

"O nome disso é racismo de Estado, há um propósito nessa forma de tratar a nossa gente, eles nunca estiveram preocupados com o nosso povo. Isso tem nome e se chama necropolítica", denuncia Magno. Necropolítica, para o intelectual negro Achille Mbembe, traduz o poder do Estado em decidir quem vive e quem morre em uma sociedade.

Sem saber se estavam infectadas ou não, as pessoas viram comunidades inteiras convalescer de febre, tosse e falta de ar. Sem teste ou socorro, cuidaram elas mesmas de seus doentes. A situação tende a ficar ainda mais dramática, considerando o avanço de novas variantes no cenário nacional da pandemia e o atraso na vacinação da população brasileira, somadas às incertezas estruturais da rede pública de saúde frente ao aumento exponencial de casos durante a chamada segunda onda. Nas comunidades, o jeito foi apelar para os remédios caseiros e aos saberes tradicionais, como forma de eufemizar os danos causados pela pandemia.

O abandono das populações quilombolas não é algo novo, o que a pandemia fez foi piorar o que já era desesperador em nossos territórios

Para o professor Hilton Silva, professor do departamento de antropologia da Universidade Federal do Pará e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), a situação de vulnerabilidade em que vivem a maioria das comunidades quilombolas em todo o país só perde para a de indígenas aldeados. O paralelo feito pelo professor tem relação com as condições sanitárias, com a falta de assistência de saúde e com a vulnerabilidade alimentar da população. Segundo o professor, há um número expressivo de pessoas, entre a população quilombola, que sofrem com doenças como diabetes, tuberculose, anemia falciforme e hipertensão arterial, que podem estar relacionadas com fatores ambientais e genéticos. Doenças que, somadas aos riscos da covid-19, acendem o alarme para os especialistas e lideranças que lutam por garantias durante a crise causada pela pandemia.

"É como se a gente tivesse que continuar lutando pelo fim da escravidão do nosso povo, porque o Estado quando não mata, deixa morrer", relata Givânia.

Falta de dados oficiais
Não há dados sobre a população quilombola nas estatísticas oficiais. O censo de 2020, que primeiro incluiria os dados sobre as comunidades remanescentes de quilombos espalhadas por todo o território nacional, precisou ser adiado por conta da pandemia. Isso acabou influenciando na ordem de prioridades do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, que não conta a população quilombola na fila de prioridades entre os grupos imunizados nas três primeiras fases de vacinação.

A justificativa apresentada pelo Ministério da Saúde para que os quilombolas não estivessem nas primeiras fases de imunização ao lado dos indígenas e ribeirinhos, por exemplo, vacinados na primeira fase, foi justamente a ausência de dados sobre a população - algo que estaria sendo analisado pelo ministério com apoio do IBGE. Segundo o plano, a vacinação do grupo está prevista para a quarta fase de imunização, ao lado de professores, profissionais da segurança pública e outros, mas que, até agora, não tem data para começar.

Alguns estados, no entanto, mesmo com o número escasso de vacinas, pretendem adiantar a imunização das comunidades quilombolas, a exemplo do Pará, com 516 comunidades; São Paulo, que possui 142 comunidades e, mais recentemente - e por força de uma ação do MPF -, o Amapá, com 73 comunidades.

A falta de dados também comprometeu o combate contra a pandemia nos territórios quilombolas, não há dados oficiais sobre o número de contaminados e mortos em decorrência da Covid-19 nos territórios. Por conta disso, lideranças e organizações parceiras, como o Instituto Socioambiental (ISA) e a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), passaram a quantificar de forma autônoma os números da doença, a primeira em nível nacional e a segunda regional. Para isso, contam com uma rede de informações estabelecida com as associações de base comunitária, que informam diariamente via telefone ou Whatsapp (quando há internet), sobre o avanço da doença.

O ISA mantém um observatório em parceria com a CONAQ, Quilombo Sem Covid-19, que concentra as estimativas nacionais sobre os casos da doença entre o grupo. O núcleo Sacaca, da UFOPA, em parceria com a Malungu, tem se esforçado para computar o número de casos no estado do Pará, estado que registrou o maior número de quilombolas mortos pela covid-19. Os dados são reunidos e transformados em um boletim que chega todos os dias aos telefones da população quilombola paraense. Até meados de fevereiro, o Brasil registrava 4.926 casos confirmados da doença, entre quilombolas, e 205 mortes.

Segundo levantamento realizado pela Malungu, o Estado do Pará possui uma população quilombola de 6.000 pessoas e uma taxa de infecção por covid-19 estimada em 37%. Ainda de acordo com este levantamento, no Pará já foram registrados 2.238 casos de covid-19 em quilombolas e 2.175 suspeitos sem tratamento médico, confirmados desde o início da pandemia. O Estado do Pará, lidera o ranking de mortes pela doença entre quilombolas, 62 no total.

Para as lideranças, todos os dados são estimados e não podem ser considerados como "números fechados", explica Givânia da Silva. Isso porque as dificuldades de acesso, distâncias e falta de comunicação, dificulta o contato com as comunidades em várias regiões do país, sobretudo em um contexto que exige isolamento.

Carlos Ribeiro, presidente da comunidade quilombola de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, em Eldorado ao sul do estado de São Paulo, relata que muitas pessoas ficaram doentes, mas que não podem afirmar em números quantas se infectaram com o novo coronavírus, porque não houve testagem para as quase 110 famílias que vivem no quilombo.

"O apoio que nós tivemos foi de ONGs e, mesmo assim, foi apenas uma vez com kits de alimentos e higiene pessoal", conta Carlos.

A falta de testes relatada por Carlos Ribeiro é um caso comum em todas as comunidades quilombolas do país, que se queixam de estarem sendo invisibilizadas na pandemia. Na comunidade de Guiomar, localizada no território de Jambuaçu, no nordeste do Pará, onde vivem cerca de 728 famílias, um episódio inusitado marcou a luta das lideranças por testagem. Ela conta que a secretaria municipal de saúde do município de Moju, onde está localizado o território, enviou um ônibus para transportar os suspeitos de terem contraído a doença até a sede do município, a fim de serem testadas lá.

"Como é que no meio de uma pandemia, em que as recomendações de saúde são o distanciamento social, eles enviam um ônibus para levar as pessoas para fazer teste? A maioria das comunidades não aceitou isso, porque seria o mesmo que está se expondo a contaminação".

"O governo nunca se preocupou em ter dados reais sobre as populações quilombolas e hoje a covid e a nossa demanda por vacina vieram para escancarar essa realidade. O governo não tem base nem para calcular quantas vacinas precisará enviar para as nossas comunidades", preocupa-se Raimundo Magno.

Luta por direitos na pandemia
De acordo com Mário Santos, liderança da Comunidade Quilombola Gibrié de São Lourenço, em Barcarena, Região Metropolitana de Belém, no Pará, "a intenção é nos invisibilizar enquanto quilombola, então eles não fizeram o plano que deveriam ter feito, um plano de combate a pandemia nos quilombos". A atual falta de planos de contingência estaduais e municipais para o tratamento do aumento de casos de coronavírus entre quilombolas evidencia as vulnerabilidades preexistentes do grupo.

Em julho de 2020 foi aprovado no Congresso Nacional um projeto de Lei 1142/20, de autoria da deputada Professora Rosa Neide (PT-MT), que previa uma série de medidas de proteção social para prevenção do contágio e da disseminação da Covid-19 em territórios indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais. O presidente Jair Bolsonaro sancionou o texto com 22 vetos, dentre eles: o acesso universal à água potável, a distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e desinfecção de superfícies, a oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva (UTI), a aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, a criação de planos emergenciais para quilombolas, pescadores e outras comunidades tradicionais, a distribuição de materiais informativos sobre a covid-19, entre outros. Após forte mobilização nacional, o Congresso Nacional derrubou 16 dos 22 vetos do presidente.

A manutenção da tramitação de processos de despejo, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agrava a situação das comunidades quilombolas, que podem se ver, repentinamente, aglomerados, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus

Em setembro de 2020, depois de vários pedidos feitos pelas organizações sociais ao Ministério da Saúde, para que o governo atendesse as comunidades quilombolas de todo o país no enfrentamento à covid-19, fornecendo EPI's e outros insumos para a proteção das famílias, além de alimentos e produtos de limpeza, a CONAQ protocolou no STF uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, um instrumento jurídico utilizado para possíveis reparações de danos causados pelo Estado no descumprimento da Constituição Federal. A ADPF-742 ou ADPF quilombola, como ficou conhecida, denunciava a omissão do Estado e pedia a criação de um plano emergencial específico para o combate da pandemia nas comunidades quilombolas. Cinco partidos políticos de oposição ao governo Bolsonaro também assinaram o documento: o PSB, PT, PSOL, PCdoB e o Rede.

Advogada da Terra de Direitos e titular da ação da CONAQ, Vercilene Francisco Dias, quilombola da comunidade Kalunga, no estado de Goiás, conta que a ação é histórica porque pela primeira vez os quilombolas recorrem diretamente ao STF sem pedir a mediação de nenhuma outra instituição. "Dessa vez nós compomos o polo ativo da ação e estamos pedindo socorro ao STF", relata a advogada Vercilene, integrante da ONG Terra de Direitos, que atua em parceria com a CONAQ, em entrevista exclusiva ao #Colabora.

Sete meses depois, no dia 12 de fevereiro, reconhecendo a legitimidade da CONAQ como autora da ação, o ministro relator do Caso, Marco Aurélio de Mello, julgou como procedente parte dos pedidos da entidade. De acordo com o voto do ministro, ficam determinadas a criação, em até 30 dias, de um plano emergencial de combate à covid-19 nos territórios quilombolas e a inclusão dos critérios raça/etnia nas contagens oficiais Ministério da Saúde no prazo de 72h. Marco Aurélio também reconheceu a urgência na imunização do grupo, mas não estabeleceu critérios para que a inclusão fosse feita já na fase atual de vacinação em que se encontra o Plano Nacional Vacinação.

Contudo os maiores prejuízos do voto do relator, segundo a CONAQ, foi o não reconhecimento da responsabilidade do Governo Federal em prover a distribuição de água potável, alimentos, equipamentos de proteção individual e produtos de limpeza. Além disso, o ministro também julgou improcedente a suspensão dos pedidos de reintegração de posse, que ameacem comunidades quilombolas, durante a pandemia.

"A gente aguarda agora o voto dos demais ministros, e esperamos formar maioria. A gente fica na expectativa de que a gente consiga realmente garantir o mínimo de direitos para a população quilombola", afirma a advogada Vercilene.

No dia 17, ao proferir seu voto, o ministro Edson Fachin, acatou o pedido da CONAQ no que diz respeito a suspensão de despejos durante a pandemia: "A manutenção da tramitação de processos, com o risco de determinações de reintegrações de posse, agrava a situação das comunidades quilombolas, que podem se ver, repentinamente, aglomerados, desassistidos e sem condições mínimas de higiene e isolamento para minimizar os riscos de contágio pelo coronavírus".

No dia 23, os ministros Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes seguiram o voto de Fachin formando a maioria. Segundo Vercilene Dias, o placar de 9 votos a 2 "foi uma vitória inesquecível. Das vitórias que a gente já teve, essa é histórica, porque é a primeira vez que a gente busca o STF para efetivação de um direito que já garantido e não estava sendo efetivado. É uma vitória maravilhosa e emocionante, depois de tantas lutas, dificuldades e enfrentamentos desde o início da pandemia".

Apenas o ministro Nunes Marques, indicado para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro, seguiu o voto do relator, além disso questionou a legitimidade da CONAQ em propor a ação e o próprio mérito da ADPF em seu decisão. Bolsonaro, que já fez várias declarações contra o direito das populações tradicionais, antes da indicação de Nunes afirmou que esperava que o seu indicado atuasse no STF conforme suas convicções pessoais e também o "interesse dos conservadores".

"As comunidades estão sofrendo muito com esse processo de negação de direitos. Estamos em uma situação muito ruim, uma situação de muita luta, muito protesto, em uma tentativa desesperada de que o Estado reconheça os direitos e as dificuldades que vivem as comunidades, reclama Magno.

(*) Esta reportagem só foi possível graças ao apoio do Rainforest Journalism Fund e do Pulitzer Center.

Pedrosa Neto
É repórter multimídia, colaborador da Agência Amazônia Real de Jornalismo Independente e Investigativo. Mestrando em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Pará. Como fixer na Amazônia trabalhou para a emissora dinamarquesa DR1, e para a emissora estatal da Noruega, a NRK, na cidade de Barcarena. Em 2019, foi um dos jornalistas contemplados com o 41o Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos na categoria multimídia com a série "Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil", trabalho em parceria com a mídia digital independente #Colabora, Ponte Jornalismo e Amazônia Real. É bolsista do Amazon RJF | Pulitzer Center.

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