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Pais vive 'boom' do terceiro setor

O Globo, Economia, p.33-34
11 de Dez de 2004

País vive boom do terceiro setor
Associações sem fins lucrativos crescem 157% e empregam 1,5 milhão de assalariados
As ONGs, fundações e associações sem fins lucrativos se multiplicaram no Brasil e, hoje, já empregam 1,54 milhão de trabalhadores assalariados. Na primeira pesquisa realizada no país sobre o terceiro setor, o IBGE constatou que, entre 1996 e 2002, o número de instituições privadas sem fins lucrativos cresceu 157%. Seu efetivo de empregados é superior a três vezes o total de servidores públicos federais na ativa naquele ano (500 mil).
Isso sem contar o exército de voluntários ou trabalhadores informais que se dedicam a essas instituições: cerca de 14 milhões, segundo levantamento anterior citado pelo IBGE.
A pesquisa — feita em parceria com Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais e Grupo de Institutos, Fundações e Empresas — mostrou que existem 275.895 empresas privadas sem fins lucrativos de caráter voluntário no Brasil. Dessas, 77% não têm nenhum empregado — ou seja, contam apenas com trabalho voluntário.
Em compensação, cerca de 2.500 entidades (1% do total) têm quase um milhão de assalariados. Universidades e hospitais estão nessa minoria e, só no Sudeste, empregam 20% do total em fundações no Brasil. Juntas, as entidades sem fins lucrativos pagam R$17,5 bilhões em salários e outras remunerações.
Ipea: expansão ligada à democracia
O resultado do levantamento surpreendeu especialistas. A diretora de Pesquisas do IBGE, Wasmália Bivar, destaca que, com quase 276 mil fundações, o Brasil conta com 16 entidades para cada dez mil habitantes. Na Itália, um censo realizado em 2000 constatou que essa relação era de 40.
— Em termos relativos, é relevante a mobilização da sociedade brasileira. A Itália tem uma tradição de associativismo e também de filantropia da Igreja Católica — disse Wasmália. — No Brasil, o fenômeno é mais recente e tem a ver com a descentralização das ações administrativas do poder público e com o aumento da coesão social — acrescentou.
Para a diretora de Estudos Sociais do Ipea, Anna Peliano, os números mostram a participação da sociedade no fortalecimento da democracia:
— Não é por acaso que a maioria das organizações surgiu a partir da década de 80, na abertura democrática.
Das 276 mil fundações existentes no Brasil, apenas 4% foram criadas antes de 1970. Mais de um quinto delas (22,46%) surgiu na década de 1980 e 50% foram estabelecidas entre 1991 e 2000. Só em 2001 e 2002, vieram as outras 11,19%. A religião tem grande participação: 25,53% das entidades são de origem confessional. Estima-se que a influência da religião seja ainda maior, já que muitas organizações com outras finalidades — como escolas e hospitais — são ligadas à instituições religiosas.
A creche Casa de Eurípides, na Rocinha, foi fundada por um centro de espiritismo kardecista. Mas, há 20 anos, tornou-se uma entidade civil sem fins lucrativos desvinculada do centro espírita. Desde então, Valentina de Vasconcelos Andrade, conhecida entre as crianças como Vó Lacy, de 72 anos, é a responsável pela creche, num serviço voluntário. Ela conta com cinco funcionárias, que trabalham com carteira assinada, para cuidar de 35 crianças entre um ano e meio e quatro de idade. A creche cobra uma pequena mensalidade, mas depende de doações e recursos arrecadados em eventos beneficentes — como almoços e bazares — para se sustentar.
A ONG Centro de Integração Social e Cultural uma Chance (Cisc) conta com padrinhos” para atender 130 crianças e adultos em programas de alfabetização, reforço escolar, inclusão digital e projetos culturais. A ONG, que surgiu na penitenciária Lemos de Brito, dá apoio às famílias dos internos e conta com as doações dos padrinhos”, além da renda do trabalho dos presidiários e de repasses do governo, como parceiro no programa Brasil Alfabetizado.
A atuação das ONGs em programas sociais do governo é, para a socióloga Maria Lúcia Werneck, professora da UFRJ, reflexo da redução da presença do Estado:
— É o Estado delegando funções sem, necessariamente, diminuir seus gastos, já que há repasses para essas ONGs.
Anna Peliano, do Ipea, discorda:
— Não estamos falando de substituição nem de redução do papel do Estado, mas sim de parcerias pelo interesse público.
Na sua opinião, a expansão das entidades reflete mais a mobilização da sociedade. Anna destaca que o número de associações de defesa de direitos cresceu mais de 300% entre 1996 e 2002, enquanto as instituições de assistência social tiveram aumento de 131%.

Metade das associações de produtores rurais está no Nordeste
Ministério e IBGE, sistema único social
Até o fim do próximo ano, o Brasil deverá conhecer um pouco mais das entidades públicas e privadas de assistência social à população. Numa parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), o IBGE fará, em 2005, duas pesquisas para identificar as instituições que são parceiras do governo na execução de programas sociais e, a partir daí, tornar possível o monitoramento e a avaliação do atendimento. Apenas este ano, o governo federal destinou ao setor R$1,2 bilhão.
Luziele Tapajós, da Secretaria de Assistência Social do MDS, informou que as pesquisas são essenciais para o desenvolver o Sistema Único de Assistência Social (Suas), que segue modelo semelhante ao do SUS na saúde. Hoje, o governo sabe quanto repassa de recursos e a quem. Mas não tem uma noção clara sobre a qualidade dos serviços prestados.
— Queremos iluminar a política de assistência social — resume. (Flávia Oliveira e Luciana Rodrigues)

Um Brasil voluntário: lavrador é orientado a vender sem atravessadores
Nordeste concentra mais da metade das associações de produtores rurais Entidades oferecem opção ao subemprego e garantem alimentação sadia
Trabalhando na enxada desde os 8 anos, o pernambucano Severino José da Silva, o Bibi, descobriu com a experiência que no Nordeste é praticamente impossível o pequeno progredir sozinho. Filiou-se a duas associações — a Terra Viva de Produtores Orgânicos e a de Trabalhadores Rurais da Comunidade de Mutuns — para vencer as dificuldades. Mas é a primeira que tem permitido mudança para melhor na vida da família. Se antes era obrigado a viver como assalariado trabalhando em sítios vizinhos e a renda familiar não chegava a um salário-mínimo, hoje consegue apurar o triplo. E dispõe de uma mesa farta com hortaliças e frutas de boa qualidade, livres de agrotóxicos, e colhidas na sua pequena propriedade, com área não superior a dois hectares.
A pesquisa do IBGE divulgada ontem mostra que as associações de produtores rurais foram as que mais cresceram: de quatro mil organizações em 1996 para 25 mil em 2002. E o Nordeste concentra a maior parte dessa expansão. Mais da metade (51%) das associações de produtores rurais do Brasil está no Nordeste.
— É muito importante fazer parte de uma associação. Hoje em dia ninguém cresce sozinho, o pequeno não consegue nada só. Tem que ser unido, ter um grupo. Os órgãos federais, os estaduais, internacionais só ajudam a quem está organizado em grupo — afirma o lavrador, enquanto cuida do seu roçado, onde cultiva 18 variedades de plantas sem agrotóxicos, no município de Chã Grande, a 85 quilômetros de Recife.
Segundo o fundador da Terra Viva, Marcelino Bezerra da Silva, Chã Grande tem pelo menos 20 associações, e algumas delas integram uma associação maior — o Espaço Agroecológico — que orienta os lavradores quanto à tecnologia orgânica e à comercialização de seus produtos sem atravessadores. No caso da Terra Viva, o financiamento vem da Associação Menonita de Assistência Social, que libera financiamentos a partir de R$500 mil para os 30 associados da comunidade de Mutuns, que fica a dez quilômetros do centro de Chã Grande, no Agreste de Pernambuco.
Verba do Bird, pobreza e política influenciam expansão
As demais associações espalhadas por outros municípios trabalham com financiamentos via governos estadual e federal, quase sempre com recursos do Banco Mundial (Bird). Severino e Marcelino integram uma multidão de pequenos produtores que se organizam em associações rurais, que terminam por formar uma verdadeira teia social no Nordeste. Segundo o Coordenador de Ações da Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário no estado, Flávio Duarte, a proliferação de associações na região tem três explicações:
— A primeira é que a associação representa uma estratégia de sobrevivência, já que 52% dos pobres brasileiros estão na área rural do Nordeste. A segunda é que os governos vêm estimulando formalmente o associativismo em programas de combate à pobreza rural. A terceira é a associação de caráter político-eleitoral, criada por incentivo de oligarquias e gestores públicos municipais. Visando a fins eleitorais, eles tentam tutelar essas organizações.

O Globo, 11/12/2004, p. 33 e 34 (Economia)

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