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Pais produz mais e come menos

JB, Economia & Negocios, p.A15
23 de Ago de 2004

País produz mais e come menos
As safras recordes de alimentos não tiveram qualquer impacto na redução da fome no país, mostra estudo da FGV
Marcelo Kischinhevsky
Os sucessivos recordes nas safras agrícolas têm turbinado o saldo da balança comercial, mas vêm apresentando impacto nulo no combate à fome no Brasil. Pior: após cinco anos de queda na renda, aumentou a chamada insegurança alimentar. Ou seja, as refeições dos brasileiros pobres são cada vez mais minguadas e de pior qualidade. Hoje, 21% da população nacional, ou 32 milhões de pessoas, se alimentam de forma insuficiente. O alerta é da professora Lena Lavinas, do Instituto de Economia da UFRJ.
- O Brasil se tornou nos últimos anos o maior exportador de carne bovina e está entre os principais produtores de frango, sucos, soja e outros grãos. O problema é que uma grande parcela dos brasileiros não tem como comprar os alimentos que estão nas gôndolas dos supermercados.
Ao lado do economista Eduardo Henrique Garcia, a pesquisadora acaba de lançar, pela Editora UFRJ, o livro Programas sociais de combate à fome - O legado dos anos de estabilização econômica, trabalho em que disseca projetos das esferas federal, estadual e municipal de dicados ao drama nacional. Nenhum deles fica bem na fotografia. Para Lena, que já trabalhou no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e ma Organização Internacional do Trabalho (OIT), todos os programas erram o alvo.
De acordo com a economista, o próprio conceito de fome no país está equivocado. Em sua esmagadora maioria, os projetos que tratam da questão se limitam à venda subsidiada ou à distribuição gratuita de alimentos, em troca de contrapartidas sociais, como matrícula de crianças na escola ou participação em programas de inclusão. Lena adverte que estas condições acabam levando à evasão da população mais carente, que muitas vezes, por absoluta falta de dinheiro, é incapaz de cumprir exigências simples.
- Se o acesso aos alimentos é um direito básico, então é preciso garantir este acesso. Muitos não preenchem as condições impostas e acabam se afastando. Os programas deveriam ser permanentes, e não reiterar a instabilidade do próprio mercado de trabalho - diagnostica a pesquisadora, que defende a universalização da ajuda por meio de programas de renda mínima incondicionais.

Programas sociais não deviam exigir contrapartida
A professora Lena Lavinas alerta que, hoje, o eixo dos programas federais, agrupados agora no Bolsa-Família, passa pelo combate à fome por meio de contrapartidas sociais. Esse modelo, vigente ao longo da era Fernando Henrique Cardoso e mantido na gestão Lula, provoca distorções, segundo Lena.
Exemplo: o teto de renda per capita para se ter direito à ajuda do governo é de R$ 90; um pequeno aumento salarial do chefe da família pode causar sua exclusão.
Ao longo dos anos 90, segundo dados do livro da pesquisadora, apesar da estabilização econômica, houve pouca oscilação na capacidade da população mais pobre de aspirar a uma dieta mínima aceitável conforme os padrões internacionais (2.266 quilo-calorias por dia). Na faixa dos 10% mais pobres, em todas as regiões metropolitanas, todos estão abaixo do nível ideal de consumo. Na Grande Recife, onde o quadro é mais dramático, a dieta média reúne menos de um sexto das calorias necessárias.
Lena acrescenta que mesmo as camadas mais pobres da população que conseguem consumir o mínimo de calorias diárias geralmente se alimentam mal, ou seja, comem carboidratos (massas, arroz, batatas) demais, e proteínas (carnes), vitaminas e sais minerais de menos.
- Por isso, a obesidade é cada vez maior entre os mais pobres - aponta a economista, que vê na desoneração dos alimentos básicos um avanço. - O impacto relativo dos impostos cresce à medida que a renda diminui. Mas a questão é: que produtos devem ser desonerados? Só arroz e feijão? Por que não carne e laticínios? - questiona.
Uma estimativa: garantir três refeições decentes por dia para todos os brasileiros que passam fome, como sonha o presidente Lula, custaria R$ 8,5 bilhões por ano. Pouco mais do que o país paga em juros da dívida pública a cada mês.

Colheita dobrou em doze anos
O fantasma do desabastecimento, que rondou tantos planos de estabilização econômica em outros anos, foi definitivamente afastado pela desvalorização cambial. Com o real mais fraco, em apenas cinco anos o Brasil deixou de ser um importador de alimentos como trigo e arroz para se tornar um dos maiores exportadores de alimentos do planeta.
- O setor agrícola está fazendo a sua parte. O Brasil hoje é competitivo - afirma a professora Ignez Vidigal Lopes, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).
De fato, a safra agrícola cresceu 106%, de 57 milhões de toneladas em 1990/91, para 119 milhões de toneladas em 2003/2004. Isso se deu, principalmente, com aumento de produtividade, propiciado pelo real fraco e pelos avanços tecnológicos. A área total cultivada cresceu no mesmo período apenas 24%, de 37,8 milhões de hectares para 46,9 milhões de hectares. Com a revolução verde, as exportações agrícolas saltaram de US$ 20,6 bilhões em 2000 para US$ 35,5 bilhões este ano, só de janeiro a julho.
A economista reconhece que a população mais pobre não tem acesso aos alimentos produzidos, mas culpa a insuficiência de renda.
- Estamos sem crescimento econômico há quase uma década. Com a desvalorização cambial, em 1999, o setor ganhou um grande impulso, mas a renda real caiu, ficamos todos mais pobres - avalia.

Luta por uma sacola de alimentos
Toda semana, as aposentadas Maria Nacionilde Sá, de 60 anos, e Maria do Carmo da Silva, 62, que são vizinhas, vão às Centrais de Abastecimento do Estado do Rio de Janeiro (Ceasa) para tentar ganhar uma sacola com gêneros alimentícios distribuída por meio do programa Desperdício Zero, que destina sobras dos produtos comercializados na central a famílias carentes.
Como não são cadastradas no programa, chegam cedo para pegar um bom lugar na fila das sacolas que costumam sobrar.
- Chego aqui quase de madrugada para conseguir os alimentos. Quando não consigo, vou nas bancas pedir alguma coisa - conta Maria do Carmo, que era empregada doméstica antes de se aposentar.
De onde moram, em Santa Cruz, até Irajá, onde fica a Ceasa, levam duas horas. Mas vale a pena. O esforço garante às duas uma economia de cerca de R$ 12 por semana com a sacola de frutas, legumes e verduras que conseguem lá.
Maria Nacionilde, que complementa a renda de aposentada trabalhando duas vezes por semana como babá por R$ 150 mensais, reserva R$ 116 para as compras. Já Maria do Carmo gasta apenas R$ 60 por mês no mercado e acha que o que consegue na Ceasa é imprescindível para completar a alimentação da família.
Maria Nacionilde conta também que, quando consegue mais alimentos do que precisa ou consegue carregar, divide sua parte com os que conseguiram menos.
- A gente tem que se ajudar, não é?
Marcela Canavarro

JB, 23/08/2004, p. A15

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