VOLTAR

Padre em Anapu diz que religiosa 'tombou na Terra Prometida'

OESP, Nacional, p.A7
28 de Fev de 2005

Padre em Anapu diz que religiosa 'tombou na Terra Prometida' Sacerdote liga a morte de missionária ao Sermão da Montanha e é criticado por misturar política com religião
Lourival Sant'AnnaEnviado especial
ANAPU - A Igreja Matriz de Santa Luzia é uma construção simples e bonita na forma de um hexágono. O teto alto, sem forro, exibe madeiramento que sustenta as telhas de barro. O piso de cerâmica imita pedras. As janelas, sem vidros, têm gradis de ferro imitando ramos de árvores. As 12 Estações da Via Dolorosa são representadas em pequenas figuras talhadas em madeira, penduradas nas paredes brancas.
Cerca de 40 fiéis, ocupando um quinto da capacidade das 12 fileiras de bancos de madeira, aguardavam ontem para a missa das 7h30, no 3.o domingo da Quaresma. Sob o som do órgão tocado por um rapaz de feições indígenas, o padre Amaro Lopes de Souza, um mulato atarracado, de 38 anos, entrou trajando batina branca com uma faixa violeta sobre os ombros, e calçando chinelos de plástico.
A missa, em memória da irmã Dorothy Stang e de dois agricultores também mortos em Anapu nas duas últimas semanas - Adalberto Xavier Leal e Cláudio Dantas Muniz -, foi toda permeada de referências aos conflitos de terra na região, como é comum nas celebrações do padre Amaro. "A sede dos que querem ter mais e mais levou nossa irmã Dorothy à cova", disse o padre, no momento do pedido de perdão pelos pecados.
"Peço perdão porque às vezes ajudo a levar as pessoas à cova com minha covardia, com minha omissão. Vamos pedir perdão pelas vezes que me omiti diante da realidade que nos cerca", propôs ele aos fiéis, a audiência ampliada pela transmissão ao vivo da Rádio Comunitária de Anapu, dirigida pelas entidades da Igreja e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade.
"Moisés viu a Terra Prometida e levou o povo, mas não conseguiu pisar nela", lembrou o padre, em seu sermão. "Do mesmo modo, a irmã Dorothy viu a Terra Prometida, lutou e tombou nela." Salientando que só agora, depois de sua morte, foi dada a imissão de posse da terra, padre Amaro continuou: "Lá ela pregou a palavra de Deus e ainda leu para aqueles que a mataram, para o povo e para ela mesma o Sermão da Montanha. Teologicamente, isso tem um grande sentido." Mais tarde, o padre explicou ao Estado a sua interpretação do episódio. Para ele, o primeiro versículo - "Felizes os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus" -, Dorothy leu para os assassinos; o segundo - "Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados" -, foi lido para o povo; o terceiro - "Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados os filhos de Deus" - ela leu para si mesma. "Jesus, andando no meio do seu povo, faz seu anúncio para proclamar a sua libertação e não o conformismo ou a alienação", disse o padre. "Para nós, que trabalhamos com os trabalhadores rurais, isso tem um sentido teológico profundo, porque essas pessoas, mesmo o que a matou, diziam que tinham medo dela. Por que ter medo de pessoas que promovem a paz?"Amaro lê a exegese do Sermão da Montanha, em um exemplar da Edição Pastoral, feita sob orientação da Teologia da Libertação: "Elas tornam presente um mundo de justiça do próprio Deus, justiça para aqueles que são inúteis ou incômodos para uma estrutura de sociedade baseada na riqueza e no poder que oprime." A irmã Dorothy, conclui o padre, "pegou justamente o discurso de Jesus que busca esse Reino".
Essas vinculações entre a religião e as disputas de terra em Anapu são criticadas pelos fiéis das diversas denominações protestantes na cidade e até por católicos que se têm afastado por conta do que consideram a politização da Igreja. Eliomar Evangelista dos Santos, um adventista que era colono na Gleba Belo Monte e foi excluído de seu lote por não aderir ao Plano de Desenvolvimento Sustentável (PDS), o modelo propugnado pela irmã Dorothy e imposto pelo Incra, é um dos críticos do padre. "Uma vez eu disse ao padre Amaro que essa atitude não é diferente da Santa Inquisição: a Igreja tentando controlar o povo, tomar conta da situação política e social, através do PDS", diz Eliomar.
Padre Amaro, que veio de Belém há 15 anos, quando ainda estava no seminário, para fazer um estágio em Anapu a convite da irmã Dorothy, e que fez sua tese de conclusão do curso de filosofia sobre o trabalho dela com os posseiros, não acredita que o envolvimento da Igreja nas questões fundiárias e políticas possa afastar os fiéis. "Para nós, aqui na região do Xingu, a Igreja até cresce com esses conflitos", diz ele.
"Quando a gente entra dentro de uma área, que o pessoal ocupa, justamente a Igreja faz é crescer." De acordo com o padre, seus críticos "se dizem católicos não praticantes, que querem vir a uma missa, a um batizado, a um evento social". Mas a sua paróquia tem 70 comunidades, diz Amaro, nascido em Itapecuru Mirim, no Maranhão. "Por onde a gente passa, é uma alegria, e isso preocupa as igrejas evangélicas, que ficam com aquele moralismo, cobrando o dízimo, explorando pessoas que não têm como pagar." Para o padre, muitos dos que não querem a mudança da situação "se encobrem de trás de um credo".
"Pelo menos eu fui formado dentro da Teologia da Libertação, e a gente tem que defender a vida", continua Amaro, que se ordenou há sete anos no Instituto Pastoral Regional, de Belém. "Não adianta ficar falando a palavra de Deus para a pessoa, se ela está com fome."
'Minha irmã deu o sangue pelo Brasil' Para David Stang, o lado obscuro do País liga-se ao assassinato de missionária
Lourival Sant'Anna
ANAPU - David Stang, irmão de Dorothy, a missionária americana assassinada há duas semanas, veio visitar o lugar onde ela vivia. Tranqüilo e sorridente, Stang percorreu os cômodos da pequena casa de madeira, guiado pela irmã Jane Dwyer, também americana, que morava com ela. Stang, de 67 anos, que vive em Denver, no Colorado, onde se aposentou como administrador de casa que cuida de portadores de doenças mentais, chegou na quinta a Belém e sábado a Altamira. À tarde, começou a enfrentar os 140 quilômetros de barro que separam Altamira de Anapu. Parou na Gleba 120, a 20 quilômetros de Anapu, onde sua irmã foi morta, e participou de uma missa. Depois de visitar a casa de Dorothy, Stang, um dos três irmãos e quatro irmãs da missionária, deu esta entrevista ao Estado.
O senhor parece bem-humorado, está sorridente, fazendo piadas.
O que eu posso fazer? Já se passaram duas semanas. Você chora, tenta entender o que tudo isso significa e espera que as coisas sigam adiante de uma forma positiva. Estou aqui para abraçar minha irmã, a vida que ela abraçou. Ela abraçou a humanidade, amava essas pessoas, a terra. Ela era uma grande mulher, que queria que a terra fecundasse. Por que estamos permitindo que esses machões, esses fazendeiros e madeireiros ilegais destruam a vida? Sou um grande amante do povo brasileiro, acho que é um grande povo. Não acho que isto represente o povo brasileiro, mas o lado obscuro.
O senhor estava a par das ameaças contra sua irmã?
Sim, por 3 mil (R$ 10 mil, referência à primeira parcela que seria paga aos pistoleiros no momento da fuga). Bravo! Três mil euros para matar uma mulher criativa. Todo mundo sabia disso. Ela disse para a polícia local que estava sob ameaça. O Estado do Pará sabia muito bem das ameaças de morte. Por que nada aconteceu? Para mim, essa é uma grande questão. Por favor, ponha isso no jornal. Eu gostaria de saber por que essa ganância, essas mortes na Amazônia continuam.
O senhor tentou dissuadi-la de ficar aqui?
Você já tentou alguma vez dizer a uma mulher para desistir do seu amor? Não é nada fácil. Se você ama de verdade, a morte não tem importância. Se você acredita em Deus, não precisa de armas.
Quando foi a sua última conversa com ela?
Ela me ligou na sexta-feira (11 de fevereiro, véspera do assassinato), e estava cheia de vida. Ela disse: "Vou descer a estrada para apoiar as pessoas que tiveram suas casas e suas colheitas queimadas. Os filhos delas estão na estrada." Que tipo de humanidade permite isso? Daí ela disse: "Eu vou sair. Estou preocupada." Eu soube mais tarde que ela foi à polícia e pediu proteção. Então para que serve a polícia?
Como foi a infância de vocês?
Vivíamos em Dayton, Ohio. Meu pai era das Forças Armadas, mas também tinha fazenda. Ele entendia a importância de ambos. Ele instilou em nós um grande amor pela terra, por nutrir a terra, desde a infância. Ele era engenheiro químico. Ele entendia que você não pode simplesmente espalhar veneno para todo lado e esperar vida. As mulheres entendem isso. Por que nós, homens, não entendemos? Homens só pensam em dinheiro? Na estrada de Altamira para cá, vimos caminhão atrás de caminhão levando madeira. Eu pensava que a lei não permitia isso. Minha irmã deu o sangue pelo Brasil. Isso nos torna parentes de sangue. Ela é sua irmã também. Quanto sangue precisamos derramar? Ela deu a vida na cruz, como Jesus. Pelas pessoas. Afinal, temos ou não temos religião?
OESP, 28/02/2005, p.A7

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.