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Outro mundo no Peru

National Geographic n. 195 jun., 2016, p. 70-91
30 de Jun de 2016

Outro mundo no Peru

Por Emma Morris
Fotos de Charlie Hamilton James

O Parque Nacional do Manu é um tesouro da Amazônia, protegido - por enquanto - pelo isolamento e pelos caçadores indígenas que percorrem as suas florestas.
Não mais do que mil índios matsigenkas vivem no parque que ocupa a bacia do Rio Manu e seus afluentes. Eles plantam e caçam na floresta, mas apenas para subsistência. Os macacos-aranha são um dos seus alvos - e também os animais de estimação favoritos.
Elias Machipango Shuverireni agarra o longo arco feito de palmeira e as flechas de bambu com ponta aguçada. Estamos saindo para caçar macacos no Parque Nacional do Manu - um imenso trecho de floresta úmida protegida e um dos parques com maior biodiversidade em todo o planeta.
Essa caçada não é ilegal. Elias pertence ao povo indígena Matsigenka. Quase mil deles vivem no parque, concentrados nas margens e nos afluentes do Rio Manu. Todos os índios do parque - desde tribos ainda não contatadas até os matsigenkas - têm o direito de colher plantas e abater animais para uso próprio, embora não possam usar armas de fogo. Elias e a sua mulher cultivam mandioca, algodão e outras safras de subsistência em uma clareira à beira do Rio Yomibato. Os filhos coletam frutos e plantas medicinais. Elias pesca e derruba árvores. E caça, sobretudo macacos-aranha e macacos-barrigudos, os alimentos prediletos dos matsigenkas. Ambas as espécies estão ameaçadas de extinção.
Há muito tempo por ali a vida vem nessa toada, mas agora que os matsigenkas estão ficando mais numerosos cresce a preocupação de alguns biólogos com o destino do parque. E se a população indígena dobrar? E se caçarem com armas de fogo? Os macacos sobreviveriam? Caso desapareçam essas espécies, responsáveis pela dispersão das sementes de árvores frutíferas à medida que se alimentam, como vai ficar a floresta?
Enquanto, fora do parque, as áreas de mata se mostram cada vez mais fragmentadas devido à exploração de gás natural, à mineração e à atividade madeireira, na reserva a proteção é um assunto crucial. Assim como a questão: o fato de que há pessoas vivendo em seu interior é bom ou ruim? E o parque é bom para as pessoas?
Com 53 anos, Elias tem cabelo preto crespo e um olhar intenso. Veste apenas uma camisa de futebol verde, calção e chinelos. Em novembro passado, enquanto cruzamos as suas plantações para entrar na mata, num dia abafado e úmido, estamos acompanhados do seu genro, Martin; da sua filha, Thalia; e de uma neta adolescente. Tal como Elias, Martin leva um arco e flechas. Thalia tem uma faixa atravessada no peito para carregar as plantas coletadas. Outro presente é o antropólogo Glenn Shepard, que passou 30 anos convivendo com os matsigenkas - é um dos raros forasteiros que dominam a língua dos indígenas.
Depois de cinco minutos na mata, soam os chamados dos sauás-de-barriga-vermelha, macacos que costumam servir de alvo para os adolescentes treinarem a mira. Outros cinco minutos e ouvimos um bando de macacos-prego-de-cara-branca. Elias se imobiliza e chega até mesmo a levantar o arco, mas então desiste. O que ele quer é conseguir algo mais poshini - mais saboroso.
Seguimos em frente por mais uma hora. Por fim, um sorriso ilumina o rosto de Thalia. Osheto, murmura ela. Lá estão eles: os macacos-aranha.
Os primatas movem-se depressa pelas copas densas, 20 a 30 metros acima de nós. Tem início a perseguição. Tropeço nas raízes, escorrego na lama e avanço sobre espinhos, atenta ao risco das serpentes. Elias e os seus parentes se revelam bem mais ágeis, mas a selva é difícil até mesmo para eles. Capturar um animal que corre pelo solo - como um caititu gordo - já é um feito e tanto. Já para derrubar um macaco-aranha, um caçador tem de acompanhá-lo na corrida e disparar uma flecha contra o alvo móvel e errante.
A fim de aumentar a possibilidade de acerto, ele lança mão de vários remédios naturais. Cerca de um dia antes da caçada, muitas vezes toma ayahuasca. A poderosa bebida alucinógena o faz vomitar e entrar em contato com os espíritos que controlam a presa. Para apurar a mira, às vezes derrama sobre os olhos o sumo de uma planta. E, durante a caçada, vai mastigando ervas ciperáceas, ou piri-piri, que contêm um fungo psicoativo que reforça a concentração mental.
Mas nada disso assegura o êxito na caçada. Vamos obedecendo aos sinais de Thalia enquanto as formas escuras e de membros compridos correm lá no alto. Elias alcança uma fêmea, mira e dispara uma flecha. Erro. O macaco foge. Não sobra tempo para outra tentativa. Se tivesse usado uma espingarda, o macaco não teria escapado.
Não há armas de fogo nem estradas, tampouco atividades de compra e venda: embora existam moradores humanos na área do Manu, a impressão é de que são muito raros e esparsos. O caminho mais comum para se chegar ao parque pressupõe uma viagem por terra de dez horas, descendo pelas encostas andinas em uma estradinha apavorante, e depois mais cinco horas em canoa motorizada pelo Alto Madre de Dios, até o ponto em que ele se encontra com o Rio Manu. A entrada principal do parque fica ali perto, mas, para visitar o vilarejo de Elias ou outros - o que só pode ser feito com permissão das autoridades -, Glenn Shepard e eu tivemos de viajar de voadeira ainda por vários dias, seguindo pelo Manu e seus afluentes. O acesso difícil protegeu o parque dos madeireiros e garimpeiros, assim como dos turistas.
Biodiversidade do Parque Nacional do Manu
Com área de 17 163 quilômetros quadrados, o parque estende-se por toda a bacia do Rio Manu, desde os campos a quase 4 mil metros de altitude, na vertente oriental dos Andes, passando por florestas de altitude, até a mata úmida de planície, na região mais ocidental da Bacia Amazônica. A região é palmilhada por antas, sobrevoada por bandos de araras e trilhada por serpentes. Noventa e duas espécies de morcego cruzam o céu noturno; 14 espécies de primata pendem dos ramos das árvores, visados por gaviões-reais. Há borboletas por todos os lados, de todos os tamanhos e cores. Sobre todas as superfícies transitam formigas. À noite, a folhagem reluz à luz das lanternas e mais parece coberta de um pó mágico - são os olhos cintilantes dos insetos.
Há milhares de espécies de árvore de todos os tamanhos. Entre as mais importantes em termos ecológicos estão as figueiras. Uma vez que dão frutos o ano todo, são elas que asseguram a sobrevivência de muitos animais da Amazônia durante a estação seca. "Já vi até uma centena de macacos aboletada em uma única árvore", conta o ecologista John Terborgh, da Universidade Duke. "Em noites de luar, quando sentem fome, eles acordam às 2 da madrugada e ficam lá até as 4." Logo após a criação do parque, em 1973, Terborgh e outros cientistas assumiram a direção da Estação Biológica de Cocha Cashu, que ocupa uma área de menos de 1% do parque. "O Manu é um dos poucos lugares nos trópicos em que se pode ter contato e estudar a biodiversidade em toda a sua plenitude", comenta o ecologista Kent Redford.
Povos indígenas
Apesar de tanta biodiversidade, a região do Manu não é paraíso intocado. Pelo contrário, há muita história ali. Várias tribos, falando línguas distintas, viveram às margens do Rio Manu, e tão povoadas eram elas que um desses grupos indígenas o chamava de "rio das casas". Os invasores incas e, depois, espanhóis, detidos pela mata impenetrável e por hábeis guerreiros, fracassaram na tentativa de conquistar as tribos ali estabelecidas. No entanto, as trocas com os incas permitiram a elas manter algum contato com a região mais ampla. E as doenças trazidas pelos espanhóis, que provocaram mortes incontáveis, estabeleceram vínculos entre a área e o restante do planeta.
Na década de 1890, esse mundo remoto passou por outra reviravolta. A produção de borracha disseminava-se em ritmo frenético. Magnatas da borracha recrutavam os nativos amazônicos, tanto como seringueiros como para atacar outras tribos, e, com isso, arrebanhar mão de obra forçada. Um dos mais ambiciosos desses magnatas, Carlos Fermin Fitzcarrald, reuniu mais de mil pessoas, quase todas membros da tribo Piro, para carregar um barco fluvial desmontado, peça por peça, através do istmo entre o Rio Manu e o Alto Mishahua. A chegada dele abriu a Bacia do Manu aos seringueiros. Usando os piros como soldados, Fitzcarrald tentou sujeitar as tribos das margens do Manu. Centenas morreram - conta-se que as águas do rio ficaram rubras. Outra tribo, a Toyeri, foi quase toda dizimada. Alguns mashco-piros morreram, e outros embrenharam-se floresta adentro.
Após o colapso do surto da borracha, a maior parte dos piros - hoje muitas vezes conhecidos como yines, por causa da língua que falam - se mudou para um trecho rio abaixo no Manu, depois se reunindo em assentamentos, como Boca Manu e Diamante, no Alto Madre de Dios. A área que deixaram para trás foi ocupada pelos matsigenkas. Estes vieram do oeste e do sul, primeiro com destino às nascentes remotas e, em seguida, às margens do Manu, depois que ali surgiram escolas abertas por missionários, nos anos 1960. Hoje, em comunidades como as de Tayakome e Yomibato, os matsigenkas dispõem de escolas, postos de saúde e telefones comunitários por satélite. A organização Rainforest Flow instalou sistemas de tratamento de água e esgoto em quase todas as casas. Nesses assentamentos esparsos, os moradores caçam e cultivam os seus alimentos. Mas também ouvem música peruana em seus tocadores portáteis e usam réplicas de sandálias Croc, juntamente com as roupas tradicionais. Os matsigenkas que vivem mais perto da nascente do rio ainda se vestem com panos tecidos a mão, e vivem sem dinheiro e sem ferramentas de metal. Pouco a pouco, contudo, eles se aproximam dos vilarejos ribeirinhos para onde vão em busca de machados e assistência médica.
Os mashco-piros estão ainda mais isolados. Eles se mantêm afastados de tudo, subsistindo da caça e da coleta nas profundezas da mata. Mas é provável que tenham ficado atentos ao mundo externo: nos últimos cinco anos, membros de um grupo começaram a aparecer nas praias fluviais do Alto Madre de Dios, pouco além da divisa do parque, fazendo sinais para os barcos e solicitando comida. Talvez tenham sido deslocados por empresas mineradoras, de gás natural ou madeireiras - ou mesmo por um declínio recente na população dos caititus, uma das principais fontes de nutrientes para esses indígenas.
Os contatos já tiveram consequências trágicas. Em 2011, um grupo de mashco-piros matou o matsigenka Nicolas Flores, conhecido como "Shaco", que, durante anos, os havia presenteado com ferramentas e comida. E, em 2015, eles mataram outro jovem no povoado de Shipetiari.
Romel Ponciano é um dentre vários yines originários de assentamentos, como Diamante, que participam do esforço do Ministério da Cultura peruano para estabelecer relações com o grupo isolado. Ele e outros compõem a guarnição de um posto no Alto Madre de Dios, na margem oposta do ponto em que costumava aparecer os mashco-piros. O posto ribeirinho foi batizado de Nomole, "Irmãos", na língua yine. Mesmo assim, os primeiros contatos foram tensos. Eles lhe pediram que disparasse uma flecha e se despisse. Examinaram-lhe os olhos e a boca, farejaram o seu sovaco, apalparam os testículos - tudo para comprovar se era mesmo um irmão. Desde então, os contatos tornaram-se mais amistosos - Romel ganhou o apelido de Yotlu, ou "A Pequena Lontra do Rio" - mas o fato é que nunca abaixa a guarda. "Talvez daqui a cinco ou dez anos possam agir como a gente", diz. "Ainda vão continuar a usar arco e flecha, mas só para caçar, e não para matar. Eles matam porque têm medo."
Segundo médicos que examinaram os índios, o isolamento fez com que eles se mantivessem mais saudáveis que os indígenas de assentamentos. Mas o isolamento dos mashco-piros também significa que contam com pouca ou nenhuma imunidade contra doenças de origem viral, como sarampo, que poderiam ser devastadoras.
Navegando a caminho de Nomole, de repente vislumbro figuras em movimento na margem mais distante. Haviam iniciado uma fogueira. Para a segurança tanto deles como nossa, nem sequer tentamos estabelecer contato. Debaixo do imenso céu, tendo ao redor a mata aparentemente sem fim, é fácil imaginar que estamos diante de populações intocadas pela civilização, vivendo em uma espécie de beatitude primordial. Porém, a situação deles é mais parecida com a de refugiados de um genocídio. Traumatizados até a quinta ou a sexta geração pelo surto da borracha, sobrevivendo como caçadores-coletores enquanto os seus antepassados haviam cultivado a terra, não há como dizer que sejam não contatados. Pelo contrário, foram muito contatados, até em demasia, na década de 1890.
Ao devastador surto da borracha se seguiram outros espasmos de exploração de recursos naturais. Madeira, ouro, gás natural - todos arrancados da floresta pela mão de obra barata dos habitantes locais. A região do Manu continua a se destacar como exceção nessa paisagem de extrativismo desenfreado. Pouco adiante da divisa noroeste do parque, gasodutos dão vazão às abundantes reservas de Camisea, das quais são extraídos até 34 milhões de metros cúbicos de gás por dia, e que contribuem de modo significativo para a economia do Peru. Projetos de exploração mais recentes, a sudeste, poderiam levar as autoridades peruanas à instalação de gasodutos através do parque, para conectá-los ao sistema de Camisea.
Há um consenso entre os estudiosos de que a mera inacessibilidade do parque funciona como a sua melhor proteção. No entanto, a "mineração de ouro e a exploração de petróleo avançam sobre áreas circundantes. Parte dessa atividade deletéria pode afetar o parque", diz Ron Swaisgood, diretor científico da estação de Cocha Cashu.
A construção de uma estrada iria acelerar bastante os danos, e o governador da região de Madre de Dios, Luis Otsuka, defende a abertura de uma via que se estenderia para mais além do Alto Madre de Dios até Boca Manu. O povoado de Diamante fica na rota projetada dessa estrada. Os moradores aguardam a via com ansiedade.
Quando chegamos ao vilarejo, vindos do parque, casas pintadas em cores vivas se agrupam à beira do rio. Crianças, porcos e galinhas perambulam pelo local. Achamos uma venda aberta e tomamos uma cerveja, nossa primeira bebida fria em semanas. No final da tarde, os homens começam a voltar ao assentamento, sempre carregando um facão, as costas reluzentes de suor. Entre eles está o líder do povoado, Edgar Morales. Ele conta que os homens estavam abrindo uma picada para os topógrafos do governo, a fim de que possam coletar os dados necessários para se conseguir a aprovação da estrada.
Os habitantes de Diamante, explica Morales, são grandes produtores de banana, que levam de barco para ser vendida em Boca Manu. Mas eles sabem que teriam preços melhores em Cusco. De maneira geral, sentem que estão sendo explorados. "Nossos filhos que saem para trabalhar com madeira ganham uma miséria", diz Morales. "Temos muita várzea boa por aqui, com terra preta. Podemos plantar banana, papaia, abacaxi, iúca - e vender tudo isso em Cusco. Logo o pessoal daqui vai ter carro. Já disseram que vai aparecer uma gente ruim e tomar a nossa terra, mas há 800 pessoas aqui. A gente sabe se defender."
O Ministério do Ambiente peruano, que administra o parque, opõe-se à abertura da estrada, assim como a maioria dos indígenas que vivem na região, conta John Florez, diretor do parque. "Só os colonos são a favor", diz ele. "A única comunidade que pede pela estrada é Diamante."
Em Tayakome, Mauro Metaki, um simpático professor primário formado pelos missionários, também é contra a estrada, e está frustrado com o fato de membros da comunidade serem favoráveis. "O governador regional mente", diz. "Ele está deixando todo mundo excitado ao dizer que vão ganhar com a estrada. Mas quem vai lucrar mesmo é ele e os seus amigos brancos, que vão levar a madeira, os animais e o ouro."
Durante muitos anos, o ecologista John Terborgh defendeu a ideia de que seria melhor se os matsigenkas saíssem do parque - voluntariamente, ressalta ele -, tanto para preservar a fauna silvestre como para a melhoria da situação econômica deles. "Se eu acho que devem existir assentamentos permanentes em parques nacionais?", pergunta retoricamente. "De forma nenhuma. Nesse sentido, acho que o modelo americano é o melhor. Você gostaria de ver fazendas e povoados no Yellowstone?"
Alguns matsigenkas mais novos já começam a partir; um dos motivos está na limitação do ensino secundário no parque. De acordo com Samuel Shumarapague Mameria, antigo líder da comunidade de Yomibato, os jovens não voltam iguais. "Quando estão aqui, pingam ervas nos olhos e tomam o piri-piri", conta ele. "Quando descem o rio, comem arroz e cebola e perdem o jeito para caçar. Ficam com a cabeça cheia de livros e ideias." Do mesmo modo, continua, "as jovens que se mudam rio abaixo, ao retornar, ficam preguiçosas demais para tecer algodão. As suas almas ficam só pensando em ler e escrever."
Alguns dos que seguem jamais retornam, arrumando empregos em atividades madeireiras, entre outras. "Você vê jovens indo embora em busca de trabalho, deixando para trás mulher e filhos, e formando outras famílias fora do parque", comenta o biólogo Rob Williams. Quase todos os matsigenkas com quem conversei gostariam de que houvesse escolas adequadas no interior do parque - e de que os jovens pudessem lá ficar.
Na imagem que fazem da região do Manu, os matsigenkas sempre incluem a si mesmos. Enquanto Terborgh e outros biólogos ocidentais vêm de uma cultura que traça uma linha entre os seres humanos e a natureza, os matsigenkas veem a si mesmos como parte da ordem natural. Plantas e animais contam com espírito e volição, tal como as pessoas, e não estão separados. Em Yomibato, me contaram a história de um senhor muito afável que virou onça e passou a matar galinhas e cães. No fim, tiveram de abater a onça com uma flecha no coração e depois cremá-la para que o seu espírito não retornasse.
Guardiões da floresta
Os matsigenkas e outros povos indígenas que vivem no parque não são apenas caçadores: na prática, atuam como guardas armados. Se todos aqueles que habitam o parque saíssem em busca de formação escolar e trabalho assalariado, argumenta Shepard, outros grupos ocupariam o lugar - e provavelmente estariam menos dispostos a respeitar as normas relativas ao uso de armas de fogo e ao aproveitamento comercial dos recursos naturais. "Não existem vazios demográficos na Amazônia", conclui o antropólogo.
Como as suas casas se distribuem pelas margens dos principais rios, os índios são os primeiros a notar acampamentos ilegais. Assim como fazem os mashco-piros, os matsigenkas, com suas flechas letais, podem até mesmo impedir tais grupos. No Brasil, os caiapós costumam expulsar madeireiros e garimpeiros clandestinos.
Enquanto os matsigenkas não usarem armas de fogo, afirma Glenn Shepard, a caça não provocará danos significativos. Ele e outros antropólogos solicitaram a dezenas de índios que registrassem o volume de caça: os animais que abatiam, os que conseguiam escapar e que distância percorriam para encontrá-los. E constataram que eles abatem cinco espécies em quantidade suficiente para reduzir as suas populações - macacos-aranha e macacos-barrigudos, queixadas, e duas aves, o mutum-cavalo e o jacu-de-spix.
Mas eles também descobriram que, mesmo que a população dos matsigenkas aumentasse muito nos próximos 50 anos, não chegaria a 10% a área do parque em que haveria esgotamento dos macacos-aranha - mas sempre contando que os caçadores não recorram a armas de fogo. Com a ajuda de espingardas, poderiam logo acabar com os macacos existentes ao redor dos povoados. Se até agora os matsigenkas respeitaram a proibição de armas de fogo, talvez isso se deva ao fato de entenderem que elas trariam uma abundância de carne apenas no curto prazo.
Cinco horas depois de termos saído para caçar, Elias e os seus parentes continuam a esquadrinhar a copa das árvores. Caminhando no alto de uma serra, topamos com um objeto enigmático e pútrido - uma maçaroca de folhas empapadas de um líquido espesso e coberto de moscas. Martin, o genro de Elias, explica que as onças-pintadas ingerem as folhas e depois as regurgitam, para se purgarem, "como nós, a fim de se tornarem melhores caçadoras". Ali perto, Elias aponta para a mancha ainda úmida de urina de onça. "Esse mijo é de agora", diz.
Então, de repente, a mata explode com gritos lancinantes. Um bando invisível de macacos-barrigudos está avisando sobre a presença da onça. Fico imóvel e sinto a adrenalina tomar conta de mim. Elias não se abala, acomoda-se sobre um tronco e enfia a mão na bolsa trançada. Tira folhas de piri-piri e começa a mastigá-las.
Ele desaparece na mata. Seu objetivo é abater um macaco-barrigudo - e, se possível, a onça. Os felinos não apenas disputam com os matsigenkas os macacos mas também matam as suas crianças. Ficamos à espera, e aí voltamos com cuidado para a trilha. Pouco depois, começa a chover. A água despenca do céu com força, como se estivesse sob pressão, e nos afastamos correndo dos cumes expostos, buscando abrigo sob as árvores. Minutos depois, Elias retorna, sorridente e de mãos vazias, empapado pela tempestade.
De volta à casa, não tem nada de carne para oferecer à mulher. Um filhote de macaco-aranha está se aquecendo junto ao fogo. Os matsigenkas adoram domesticar os animais da floresta - geralmente um órfão filho de uma fêmea que foi caçada por eles. O macaco bebê está ensopado, tal como nós. Ficamos ao lado dele perto do fogo. A fumaça sobe acima dos mamoeiros, acima de Yomibato, dispersando-se sobre a floresta.

National Geographic n. 195 jun., 2016, p. 70-91

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