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Outro mundo é possível

CB, Opinião, p. 21
Autor: CARNEIRO, Sueli
30 de Out de 2004

Outro mundo é possível

Sueli Carneiro
Pesquisadora do CNPq e diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra

O Fórum Social Mundial (FSM) surgiu como contraponto aos efeitos perversos do processo de globalização da economia, conforme reza a cartilha de exclusão de Davos. Rapidamente progrediu em ambição, tornando-se o cenário em que se engendra uma nova narrativa para o mundo, em que comparecem os sonhos e necessidades da maioria excluída do mundo e de parcelas da minoria incluída, que deseja e acredita que outro mundo é possível e que a globalização pode adquirir uma face humana e solidária.
A Carta de Princípios do FSM afirma que ele não tem caráter deliberativo. É um espaço de debates sobre os atuais mecanismos de dominação do capital, dos meios de resistência e superação dessa dominação, e sobre as alternativas para resolver os problemas de exclusão e desigualdade social que o processo de globalização engendra. É também um espaço plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário.
Por isso causa espanto a recente declaração do presidente Lula em relação ao FSM. Disse o presidente que ele tende a se transformar numa feira de produtos ideológicos, onde cada um vem e compra o que quer, vende o que quer. Daí, para o presidente, a necessidade de que o FSM defina um tema prioritário, como bandeira
da sociedade civil.
O espanto decorre do fato de o presidente Lula resolver colocar ordem nessa bagunça ideológica, sugerindo ou definindo, a partir do seu espaço e ótica governamental, o tema considerado por ele convergente e prioritário a ser vendido e comprado pela sociedade civil mundial: a fome. Mantêm-se na fala do presidente a confusão, presente também em relação a outras questões governamentais, entre esfera pública e estatal, em que a sociedade civil, em prejuízo de sua autonomia, é convocada a se tornar co-responsável por prioridades políticas governamentais, que ela não definiu por muito legítimas e urgentes que sejam, como é o caso do combate à fome.
A multiplicidade de necessidades e expectativas que hoje entrecorta o FSM faz com que, com razão, Emir Sader, um dos membros do Comitê Internacional do FSM, afirme que pela multiplicidade de temas que produz o mundo atual, não há um que cruze. E acrescenta os eixos fundamentais que orientam as diferentes versões do FSM: A nossa luta é contra a exploração, a alienação, a dominação e a discriminação. Diante dos princípios e dos eixos fundamentais que norteiam o FSM, choca a desenvoltura com que o presidente brasileiro se sente confortável para pautar e orientar monotematicamente a sociedade civil mundial.
As complexidades temáticas assumidas pelo FSM não são redutíveis, não conformam prioridades ou hierarquias, mas tornam complexas as análises e proposições; é o espaço em que se desenrola essa difícil construção.
Tentar acelerar o tempo de maturação dessa construção exige, antes de esgotar todas as escutas, querer antecipar os seus devires e impor-lhe uma agenda, significa abortar as suas potencialidades transformadoras, sobretudo quando pautadas por interesses governamentais.
É verdade, conforme afirma Sérgio Haddad, que há quase um clamor por buscar indicativos, no contexto do FSM, sobre os temas mais convergentes e suas estratégias de ação. Mas ele adverte que, de um lado, o grande problema talvez seja como realizar tal proposta dentro do espírito da carta de princípios e do método FSM, buscando evitar
a tendência freqüente de que alguns iluminados digam para as maiorias o que se deve fazer como estratégia de luta.
A última edição do FSM na Índia é exemplar sobre o quanto de escuta e diversidade de vozes precisam ainda ser contempladas nessa busca de alternativas à globalização, que possam abraçar e abarcar-nos a todas e todos.
Segundo Haddad, viveu-se lá um caldeirão de diferenças e percebeu- se o quanto estamos isolados em nossa visão ocidental, dada a diferença de enfoques e prioridades colocados pelos representantes dos diversos países asiáticos ali presentes.
Deseja-se que próxima edição do FSM pós-Porto Alegre/2005 ocorra em um país africano, nova oportunidade de escuta de um continente onde, embora se concentre de forma mais aguda a problemática da fome, haverá muito o que ouvir e propor sobre os eixos de lutas estruturais do FSM: a exploração, a alienação, a dominação e a discriminação, dos quais a fome, em grande medida, é conseqüência, exigindo remédios emergenciais, mas, sobretudo, estratégias de transformações estruturais para que ela e demais mazelas sociais que afligem africanos e outros povos possam ser erradicadas.

CB, 30/10/2004, Opinião, p. 21

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