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Ouro verde muda a face do Para

JB, Economia & Negocios, p.A19
26 de Jan de 2004

'Ouro verde' muda a face do Pará
Oeste do Estado é a nova fronteira dos produtores de soja. Autoridades temem expansão desordenada

Gisele Teixeira
SANTARÉM, PA - O agricultor gaúcho Severino Dambroski, conhecido como Polaco, ficou cinco dias em coma em 1978. Quando voltou a si, recebeu o veredicto: estava intoxicado pelos produtos químicos usados no cultivo da soja. Se quisesse viver, teria de abandonar a atividade e ficar longe das lavouras. Polaco vendeu as terras em Santa Rosa, sua cidade natal e uma das maiores produtoras no Rio Grande do Sul, e foi parar no local onde acreditava que a soja nunca chegaria: Acaratinga, comunidade da Floresta Nacional do Tapajós, no Pará, coração da Floresta Amazônica. Hoje, 15 anos depois, viu que se enganou. O Oeste paraense é a nova fronteira da soja.
- Correr daqui, só para o cemitério - conforma-se.
Aos 66 anos, ele vê com tristeza a chegada diária de dezenas de produtores do Rio Grande do Sul e do Mato Grosso, que desembarcam na região com a esperança de fazer dinheiro com o ''ouro verde''.
- Vai ter muito estrago na natureza - lamenta.
A monocultura da soja avança a passos largos sobre a região. Santarém, às margens do Rio Tapajós, é o centro da produção. Mas outros municípios do entorno, como Belterra, estão atraindo os plantadores, que atravessaram o Rio Amazonas e estão em Alenquer, Monte Alegre, Prainha e Juruti. E também já se instalaram às margens das rodovias Santarém-Cuiabá (BR-163), Transamazônica (BR-230) e Santarém-Curuá-Una (PA-370).
A chegada dos grãos traz euforia, mas também divide a região. De um lado, estão ambientalistas, pequenos produtores, o Ministério Público Federal e parte da população. Esta ala teme que se repita no Oeste o ocorrido no Sul do Pará, onde o avanço da fronteira resultou em grandes desmatamentos e sérios problemas sociais e ambientais, a reboque das frentes de pecuária e madeireiras. Também quer evitar os estragos deixados pela soja no Centro-Oeste. Em 56% do Cerrado, a vegetação nativa deu lugar à monocultura.
Na outra ponta, estão produtores de grãos, que buscam novas áreas para plantar, estimulados pelo crescimento do PIB agrícola e pelo bom momento da soja, e ainda grandes exportadores do Mato Grosso do Sul. Comerciantes e parte da comunidade de Santarém, município que viveu um declínio econômico após o fim do ciclo do ouro, na década de 80, também sonham com a volta dos tempos áureos. Este grupo alega que a chegada da soja não causa desmatamento e que a região possui entre 500 mil e 600 mil hectares antrópicos, isto é, com vegetação já resultante da ação do homem.
Diversos fatores são fundamentais para a expansão da soja na Pará. Um deles é o baixo custo da terra. De acordo com a Secretaria de Agricultura de Santarém, há cinco anos o hectare era vendido a R$ 25. Com a chegada dos ''gaúchos'', como são chamados os plantadores de soja, o preço já supera R$ 1 mil. Outro atrativo é a instalação, pela Cargill Agrícola, de um terminal graneleiro em Santarém, segundo maior porto paraense. A obra, inaugurada em 2003, é questionada pelo Ministério Público Federal por não ter Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto ao Meio Ambiente.
Por fim, a possibilidade de conclusão da pavimentação da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, completa o elo da corrente. O asfaltamento é o sonho dos produtores do Mato Grosso e tem o apoio do governador do Estado, Blairo Maggi (PPS), maior produtor individual de soja do mundo. Escoar a safra por porto fluvial no Pará diminuiria significativamente o custo com frete para exportação. O governo do Mato Grosso calcula uma economia de US$ 46 milhões por ano para os produtores daquele estado, algo em torno de US$ 38 por tonelada. Hoje, os grãos são levados por caminhões ou ferrovia até os portos de Paranaguá (PR) e Santos (SP).
Uma coisa é certa: basta um rápido sobrevôo pela região para perceber que o avanço sobre áreas de floresta acontece de forma desordenada e sem o controle do Estado. Estima-se que pelo menos 300 agricultores já estejam na região, muitos sem documentação nenhuma da terra ou autorização para exploração. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) alega que falta estrutura para fiscalizar. De acordo com a gerente em exercício do Ibama de Santarém, Rosária Sena, são apenas sete fiscais para os 25 municípios do Oeste do Estado, uma área de 1,7 milhão de hectares. Além disso, não há zoneamento agroecológico. As conseqüências são visíveis.
Rosária explica que, na região, a maior parte das terras é da União. Desta forma, os agricultores não se tornam proprietários, mas adquirem o direito de posse, pagando apenas as benfeitorias, em geral nulas. Os módulos são de no máximo 100 hectares, ideais para pequenos produtores. ''Mas quem chega compra em lotes, expulsando os caboclos, que acabam na cidade'', diz. Alguns trocam terras por carros, gastam o dinheiro, e depois não têm para onde voltar.
Governo cria grupo de trabalho

O assessor especial do Ministério do Meio Ambiente, Carlos Vicente, afirma que a determinação desta gestão é não atuar na Amazônia de forma isolada. Um grupo de trabalho, com representantes de 11 ministérios, elaborou recomendações estruturais e emergenciais para conter o desmatamento e minimizar os impactos sociais de novas atividades e obras. Entre elas, estão o ordenamento territorial e fundiário, para definir o uso das terras públicas e um plano de regularização das áreas já ocupadas.
- Vamos também montar um cadastro imobiliário nas áreas mais críticas, como o entorno da BR-163, para combater a grilagem - diz.
Outro objetivo é aumentar a capacidade de fiscalização e incluir, numa mesma operação, a busca de armas e o combate ao trabalho escravo. Ainda este mês será concluído o relatório BR-163 Sustentável, que pretende ser referencial para as próximas obras públicas, ''um macrozoneamento da estrada, com demarcação de áreas de conservação, extrativismo indígena e agricultura''.
Enquanto em Brasília o governo monta grupos de trabalho, no Pará os produtores avançam em outro ritmo. Caetano Vendruscolo, há um ano na região, diz que Santarém é a Cuiabá dos anos 80.
- Só que aqui tem tudo para as lavouras avançarem mais rápido ainda - ressalta, sem dó da mata. - Onde é plano, temos que derrubar tudo. A floresta em pé não presta para nada.
Já Vilmar Dalmina, de Água Santa (RS), que planta 500 hectares de soja transgênica em solo gaúcho e quer um pedaço ''da última fronteira do país'', acredita que é possível preservar parte das áreas.
- É o que fizemos no Rio Grande do Sul.
É esperar para ver.
Tecnologia e foco na preservação

SANTARÉM, PA - De Erechim, no Rio Grande do Sul, a Alenquer, no Pará, são 4,5 mil quilômetros. Esse foi o caminho percorrido por Ceser Busnello, de 43 anos, para chegar à Amazônia. Filho de uma família de 13 irmãos e que cultiva soja há 50 anos, Busnello encontrou no Pará a chance de uma vida melhor. Ele possui uma área plantada de 150 hectares em Santarém e outra de 600 hectares na fazenda Agro Santa Fé, na PA-254, a 50 quilômetros da sede de Alenquer. Está indo para a terceira safra e, ao contrário de grande parte dos produtores na região, tem rara consciência ecológica (embora não goste de ONGs) e menos voracidade ao falar de dinheiro.
- Nós nos criamos na terra. A gente só quer terra para plantar - diz.
Busnello conta que a decisão de mudar para o Pará não foi fácil, mas a escassez de terras agricultáveis no Sul não lhe deixou muitas alternativas. Segundo ele, o maior atrativo da região é o clima.
- Antes de vir para cá, passei dez anos assistindo ao noticiário da TV para ver onde chove bem - conta.
A decisão da Cargill de instalar um porto graneleiro em Santarém também pesou.
- Com ela, a gente sabe que vai ter apoio - diz.
Ele optou por arroz e milho para a primeira safra e pela soja como rotação de cultura. E está encantado com os resultados. Por enquanto, colhe 3,3 toneladas de arroz por hectare e três toneladas de soja por hectare.
- E isto porque estamos começando. A terra vai ficar boa a partir do terceiro plantio.
A área total é de 15 mil hectares, mas boa parte é de castanheiras, que Busnello preservou. O produtor conta que, quando chegou, a fazenda tinha apenas um funcionário. Hoje, são oito, mais 30 temporários e 50 terceirizados. O produtor investiu R$ 180 mil num galpão para maquinários e insumos. Está nos planos cultivar tudo o que for consumido na fazenda.
- Aqui não tem nada local. Até o leite vem de Teutônia, no Rio Grande do Sul. Está tudo por ser feito.
O produtor conta com uma ajuda importante, o filho Alan, de 11 anos. Entre as funções do menino, está acompanhar a cotação da soja e a previsão do tempo na internet.
- O pai ainda não mexe bem no computador - diz.
Comunidades enfrentam pressões

SANTARÉM, PA - As organizações não-governamentais (ONGs) não estão preocupadas à toa. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) sobre o desmatamento na Amazônia revelam aumento de 40% entre 2001 e 2002. A área passou de 18.166 quilômetros quadrados para 25.476 e começa a ultrapassar o chamado Arco do Desmatamento para mergulhar no coração da floresta.
Ane Alencar, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), afirma que inicialmente os agricultores utilizam áreas já desmatadas antes, mas depois incluem floresta secundária, abandonadas há 30 ou 40 anos.
- As árvores destas matas secundárias já cumpriam de 80 a 85% do papel de uma floresta madura, ou seja, poderiam ser consideradas praticamente regeneradas. A biodiversidade está lá - diz.
Ane ressalta ainda que na região já há um processo fundiário estabelecido, com famílias assentadas que sofrem pressão para vender suas terras. Do outro lado do Amazonas acontece o mesmo em comunidades tradicionais.
- Num raio de 50 quilômetros de Santarém, 40% da população já evadiu - diz.
Segundo o promotor geral da República no Pará, Felício Pontes, o Oeste começa a ter os mesmos problemas registrados no Sul do Estado, como concentração fundiária, grilagem de terra e desaparecimento de trabalhadores rurais. Para ele, é preciso discutir o tipo de desenvolvimento que se quer para a Amazônia.
- Ninguém é contra a agricultura, mas é preciso respeitar a legislação ambiental e a própria comunidade - concorda o vice-presidente de Ciência e Tecnologia da Conservação Internacional, José Maria Cardoso da Silva.
Eldorado para novos negócios

SANTARÉM, PA - Andrigo Zuchelli é um dos que seguem o rastro dos negócios da soja. Natural do Paraná, ele está há um ano em Santarém, onde abriu a Liderança Agro Insumos, para fornecer assistência técnica aos produtores. O escritório é uma filial da empresa que nasceu em Sorriso (MT), município responsável por 2,8% da safra anual brasileira da cultura e 18% da safra de Mato Grosso.
- Sorriso tem hoje 650 mil hectares plantados e 80 empresas de assistência. Aqui ainda somos apenas seis no negócio - informa, revelando o potencial da região. - A soja substituiu o ouro. Os valores são altos.
O empresário rebate argumentos dos ambientalistas de que o solo da região é pobre.
- O solo é realmente fraco em potássio, mas cada R$ 1 usado para corrigir a produção vai gerar R$ 3 ou R$ 4 de renda.
Zuchelli fez questão de chegar cedo para esperar o verdadeiro boom da soja, daqui a duas ou três safras, quando o solo estará na condição ideal. Mas já conseguiu a simpatia dos produtores, que batem ponto no fim da tarde para tomar chimarrão na Liderança.
Carlos Mechetz, proprietário do restaurante Mascote, um dos mais tradicionais da cidade, também está animado. Com 65 anos, ele acompanhou boa parte da história de Santarém, do auge ao declínio do ouro.
- Naquela época, cheguei a ter 80 mesas lotadas diariamente e 105 funcionários. Depois, isso aqui virou uma tristeza. Caímos para 20 mesas na década de 80, atrasei impostos e quase perdi o negócio - conta, ressaltando que o movimento está se recuperando.
Mas Robinelson da Costa, gerente da Casa Veterinária, aberta há 15 anos, diz que os produtores compram direto de grandes empresas.
- Entra e sai gente e o dinheiro não fica aqui - critica.

JB, 26/01/2004, p. A19

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