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Os ventos amazônicos

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: Washington Novaes
19 de Nov de 2004

Há poucos dias, o governo federal anunciou a criação de duas reservas extrativistas, com pouco mais de 20 mil km2, no Estado do Pará - uma boa iniciativa para gerar trabalho e renda para faixas necessitadas da população, em áreas de conflito com madeireiras. Um passo na direção de manter o "laboratório em pé da floresta" - a que se referiu o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ennio Candotti.

É notícia importante, em meio a um panorama inquietador na região, que põe em dúvida a eficácia do Plano Amazônia Sustentável, elogiado neste espaço (4/6) ao ser anunciado. Também há poucos dias se divulgou que as queimadas até setembro na região (118 mil focos, 80% do total brasileiro) superam largamente as do ano passado e, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, podem ser ainda muito mais. Já o desmatamento, segundo informações oficiosas muito recentes, superou em 2003/2004 o nível do ano anterior e ficou acima de 30 mil km2 (quase 30% mais). Diz o jornal O Globo (7/11) que a administração federal em cinco meses deste ano só conseguiu implementar 2% das 231 metas estabelecidas naquele plano, que envolve 13 ministérios; 15% das metas (35) nem sequer foram iniciadas e sobre 11% (26 metas) não há nem informação. Apenas 6 das 10 bases de fiscalização previstas foram instaladas e só estão disponíveis 6 dos 80 helicópteros previstos para essa finalidade.

Ainda não é tudo: 14 anos depois de iniciado, a um custo de mais de R$ 7 bilhões, o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) serve quase só ao controle do tráfego aéreo pelas Forças Armadas, não aos órgãos civis encarregados da fiscalização, do planejamento e implementação de projetos governamentais. "Falta mais ação dos órgãos do governo", diagnosticou o brigadeiro-do-ar Orlando Bellon. Tanto assim que das 500 horas de vôo dos aviões-radares oferecidas para este ano só 109 haviam sido usadas. "Há órgãos que não perceberam até hoje o que o sistema pode oferecer" (19 radares fixos, 6 móveis, 10 meteorológicos, plataformas fluviais para coleta de dados, estações para receber dados de satélites, 5 aviões com radares, 3 aviões para sensoriamento remoto, centenas de telefones via satélite, imagens aéreas de alta definição, análises geológicas, mapas, etc.), complementa o diretor-executivo, Edgar Fagundes (O Globo, 24/10).

É grave. Porque já são inquietantes os problemas causados pelo desmatamento e pelas queimadas, que afetam o clima da região e de outras áreas do País - como diagnosticaram vários estudos na reunião anual da SBPC e na III Conferência do LBA.

Enquanto isso, avança-se com a decisão de pavimentar quase 1.000 km da rodovia Cuiabá-Santarém, ao custo de R$ 1 bilhão, sem que estejam equacionadas as questões levantadas por numerosos especialistas, especialmente a influência que terá em novos desmatamentos, numa região onde já há mais de 20 mil km de rodovias ilegais, que contribuíram fortemente para a devastação e a degradação de bacias hidrográficas (Estado, 4/10).

Parece tomada também, no âmbito do Executivo (terá de passar pelo Congresso), a decisão de implementar o projeto de entregar à iniciativa privada o manejo de florestas nacionais (fala-se em 50 milhões de hectares, 500 mil km2) - outra iniciativa polêmica que sofreu duras críticas do professor Aziz Ab'Saber, da USP, um dos estudiosos que mais conhece a Amazônia. "É um crime histórico", disse ele (Folha de S.Paulo, 9/11). A seu ver, o projeto vai estimular a exploração intensiva das florestas numa faixa à margem das rodovias e contribuir para a perda da biodiversidade, que não se recuperará. Teme também que a concessão de áreas públicas por 30 ou 60 anos, além de não coibir o desmatamento, leve à perda definitiva de áreas que poderiam ser a base de um grande projetos de conservação da floresta (as terras públicas representam mais de 40% da Amazônia). Na sua opinião, o caminho correto seria o de projetos que associassem a conservação ao extrativismo por comunidades tradicionais e à exploração de espécies nativas, tal como no Projeto Reca, em Rondônia.

A divisão de forças está instalada. Muitas ONGs já aderiram a esse projeto das florestas nacionais, com a promessa de participação de comunidades tradicionais. E a polêmica prosseguirá mesmo que se exija certificação da madeira extraída nessas áreas (com a qual se pretende impedir que a maior parte dos 86% da madeira amazônica consumida no mercado interno seja ilegal). Alguns estudiosos já manifestaram seu inconformismo com a abolição da exigência de manutenção da reserva legal de 80% da área (obrigatória) em toda a Amazônia nos projetos com certificação. Outros lembram que nesse processo, extraindo os melhores espécimes, se promove uma "seleção às avessas", que contribuirá para a decadências das espécies e da biodiversidade em geral.

Muitas críticas, muitas polêmicas, muitas inquietações. Às quais se somam as que se referem à permanência dos subsídios para a produção de eletrointensivos exportáveis (que geram problemas ambientais e sociais), a anunciada construção da usina de Belo Monte, a utilização de carvão mineral chinês (altamente poluidor) na produção de aço no Maranhão.

Ainda uma vez, valeria a pena lembrar as palavras do presidente da SBPC: o "laboratório em pé" da Amazônia é uma das grandes esperanças brasileiras; é preciso mantê-lo e destinar recursos suficientes para que a ciência possa estudar a biodiversidade e transformá-la em produtos medicinais, alimentos, novos materiais - uma exploração moderna e sem os altos custos de hoje. Lembrar as palavras do ex-presidente do Incra e ex-secretário da Agricultura de São Paulo Xico Graziano nesta página: a Amazônia precisa de uma moratória, de desmatamento zero. E ambos lembram que na área já desmatada da Amazônia (mais de 600 mil km2) se pode plantar a soja que se quiser, avançar com a pecuária e ainda promover assentamentos; não falta espaço.

Mas, ao que parece, os ventos são outros

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