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Os rios dao resposta

OESP, Espaco Aberto, p.A2
Autor: NOVAES, Washington
01 de Out de 2004

Os rios dão resposta
Washington Novaes
Teria sido muito útil se representantes do governo federal - que tomou a decisão de transpor água do Rio São Francisco para projetos de irrigação no semi-árido nordestino, atropelando as recomendações em sentido contrário do comitê de gestão daquela bacia - houvessem assistido na semana passada, em Belo Horizonte, a algumas das exposições no âmbito de um seminário promovido pelo Projeto Manoelzão, que cuida do Rio das Velhas e do "Velho Chico". Teriam podido ver ali quantos problemas dramáticos pode gerar a má gestão dos rios. E como custa caro resolvê-los.
Um representante do Ministério do Meio Ambiente da Alemanha, por exemplo, mostrou o que está sendo feito, principalmente na Baviera, para "devolver os rios ao seu trajeto natural", eliminando retificações, canalizações e outras obras e intervenções humanas. Ao custo de 2,3 bilhões de euros (perto de R$ 9 bilhões), cerca de 2.500 quilômetros de rios serão "renaturalizados". E Munique acredita que em dois anos terá de volta as praias ribeirinhas que havia perdido.
Uma nova lei em fase final de discussão na União Européia obrigará países e Estados a definir áreas de inundação e de risco, proibir novas ocupações, limitar a agricultura, proibir obras de canalização e retificação. Tudo para "dar aos rios mais espaço", impedir que intervenções humanas provoquem desastres mais à frente. Porque "os rios dão resposta", como observou o representante alemão.
Seu país está muito preocupado com possíveis novas inundações, em função de mudanças climáticas (como as que já aconteceram em 2002, durante uma onda inusitada de calor). Um relatório recente da Agência Européia do Meio Ambiente diz que aquele continente "está esquentando mais rapidamente" que o restante do mundo; se prosseguirem as atuais condições, não haverá mais invernos em 2080, com freqüentes ondas de calor, derretimento de geleiras, inundações, elevação do nível do mar. Outro relatório, apresentado por 90 instituições científicas no Simpósio da Água de Estocolmo, mostrou o nível do desperdício na irrigação no mundo: quase dois terços da água retirada para esse fim não chega às plantas, infiltra-se no solo ou se evapora (estará o projeto de transposição preocupado com isso, principalmente com o nível de desperdício dos pivôs centrais financiados pelo sistema oficial de crédito?).
Poderia ser útil também à administração federal ler relatórios recentes sobre o Rio Amarelo, na China, onde a agricultura gera 1 bilhão de toneladas de sedimentos anuais que ele tem de carregar para o mar. Mas a construção de barragens de hidrelétricas está interferindo no processo. Há pouco, o governo chinês teve de esvaziar quase totalmente um dos reservatórios (Xiaolangdi) para dele retirar 6 milhões de toneladas de sedimentos que haviam reduzido à metade sua capacidade de armazenamento e ameaçavam provocar inundações. A mesma China está às voltas com protestos de seus vizinhos (Tailândia, Laos, Camboja, Vietnã) porque o uso de água na agricultura e a construção de barragens no Rio Mekong estão reduzindo fortemente o fluxo de água rio abaixo (o Mekong tem 4.500 quilômetros).
Talvez nem precisassem ir tão longe os administradores federais. Poderiam ter visto em Foz do Iguaçu, há duas semanas, num evento promovido pela Itaipu Binacional (que é administrada pelo próprio governo federal), um bom exemplo de respeito às boas normas na gestão das águas.
Preocupada com o nível de sedimentos das lavouras e pastagens carreados por 23 rios que correm para seu reservatório (mais de 11 milhões de toneladas por ano), com a eutroficação das águas (algas que proliferam graças aos nutrientes dos sedimentos) e os prejuízos para o abastecimento de Foz do Iguaçu, a hidrelétrica concebeu e está executando há um ano um programa - "Cultivando a Água Boa" - que se preocupa com a identificação de todas as causas do problema e desenvolve 70 projetos e programas para enfrentá-los nas 23 sub-bacias, que representam uma área total de 8 mil quilômetros quadrados em 29 municípios.
Ali, a perda média de solo por erosão nas culturas de soja vinha sendo de 780 quilos anuais por hectare. E a esse problema se somava o uso médio de 11 litros de agrotóxicos por habitante/ano, com 8 milhões de embalagens desses produtos sem destinação adequada (no município de Santa Helena foram encontradas 59,7 embalagens por habitante). Para piorar tudo, a remoção das matas ciliares (que poderiam ajudar a conter o transporte de sedimentos para os rios) e a geração de poderosa carga de efluentes de criações (bois, porcos, aves).
Tudo isso os programas e projetos estão tendo de enfrentar, somando a gestão por sub-bacia, a recomposição das matas ciliares (que pretende "vender" o carbono seqüestrado), o plantio direto (para reduzir a erosão), a implantação do saneamento rural (para tratar os efluentes e dar-lhes destinação adequada), a criação de corredores de biodiversidade, o combate ao mexilhão dourado que invadiu o reservatório (nos 1.350 km2, chegaram a ser contados 180 mil mexilhões por metro quadrado da superfície; hoje são 53,7 mil) . Simultaneamente, a implantação de agricultura familiar orgânica, de apicultura, de plantas medicinais, o repovoamento dos rios por peixes e programas de pesca, o "turismo nota 10". Nas cidades, coleta solidária de lixo (gerando postos de trabalho e renda), a destinação adequada dos resíduos, a implantação do tratamento de esgotos, ensino profissionalizante de jardinagem. E tudo seguindo a "Agenda 21 do Pedaço".
São programas como esse que poderão mudar o dramático quadro apresentado pela Defensoria da Água (Estado, 22/9), que mostra um Brasil onde em uma década se multiplicou por cinco e chegou a 20 mil o número de locais com águas contaminadas principalmente pelo despejo de resíduos industriais, esgotos urbanos sem tratamento e lixo e chorume que escorre dos lixões. Em dez anos, diz o relatório da Defensoria (CNBB, Ministério Público Federal , UFRJ e Caritas) - que será apresentado este mês numa reunião da Unctad em Genebra -, será muito grave a escassez de água nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio e Belo Horizonte, atingindo 40 milhões de pessoas.
Tenhamos juízo. Informações não faltam.
Washington Novaes é jornalista

OESP, 01/10/2004, p. A2

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