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Os primeiros brasileiros

O Globo, Ciência, p. 43
06 de Ago de 2011

Os primeiros brasileiros
Botocudos podem ser descendentes diretos do povo de Lagoa Santa, o mais antigo do Brasil

Renato Grandelle
renato.grandelle@oglobo.com.br

Selvagens, sanguinários e estranhos. Esses adjetivos, Comumente aplicados aos botocudos, mostram como a história nunca foi muito generosa com estes índios, cujo nome vem dos discos (botoques) que usam para alongar o formato de lábios e orelhas. Vítimas de um genocídio que, em 300 anos, reduziu sua população a poucas dezenas de pessoas, eles podem ser descendentes diretos do povo de Lagoa Santa (MG), os primeiros habitantes do Brasil. A suspeita remonta há dois séculos, mas só agora a ciência conseguiu juntar evidências desse parentesco.
A prova mais recente foi detalhada em um artigo da "Revista de História da Biblioteca Nacional" deste mês. A pesquisa, do Instituto de Biociências (IB) da USP, comparou a morfologia do crânio de Luzia - o esqueleto mais antigo das Américas, com cerca de 11 mil anos - com o de diversos grupamentos indígenas, como marajoaras, tupis e construtores de sambaquis. Os botocudos são os que têm mais semelhanças com a considerada primeira brasileira.
Índios podem ser herdeiros de Luzia
- São características dificilmente observáveis a olho nu - pondera Danilo Vicensotto, pesquisador do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do IB-USP. -
Quando transformamos as medidas cranianas em dados, parece mais claro. Se compararmos o busto da Luzia e a foto de um nativo americano atual, é possível perceber transformações no formato dos olhos e nas características faciais, por exemplo. Mas esta distinção no pacote biológico é menor quando Luzia é posta ao lado dos botocudos.
Vicensotto admite que é necessário colher mais provas - leia-se: estudar outros crânios e aguardar avanços na análise genética. Seu levantamento, porém, mantém acesa a possibilidade de os índios de lábios largos, se não tão antigos quanto Luzia, ao menos podem ter sido seus herdeiros, até 8 mil anos atrás.
O debate sobre a origem dos botocudos começou no final do século XIX, quando um conjunto de técnicas, usadas para medir o corpo, sugeriram que essas tribos eram descendentes diretos dos homens de Lagoa Santa. Poucas décadas depois, no entanto, as conclusões desse estudo foram rechaçadas. A polêmica só voltou à baila nos últimos 15 anos, após o geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisar o DNA mitocondrial desse grupo. Ao constatar como o material genético dos sobreviventes desta população mudou com os séculos, ele aventou a possibilidade de que existem aspectos biológicos ligando-os aos pioneiros do Novo Mundo.
- Não existe um antagonismo entre a análise do DNA e a morfologia do crânio, que é estudada agora. São trabalhos complementares - julga. - Infelizmente o estado de conservação precário do sítio arqueológico não permite a coleta de DNA dos habitantes de Lagoa Santa. Ainda assim, não podemos descartar a possibilidade de que eles tenham interagido com os botocudos.
Os botocudos foram um dos povos mais perseguidos pelos conquistadores portugueses. A perseguição foi intensa durante os séculos XVII e XVIII, em busca de metais preciosos pelo interior do Brasil. Os botocudos eram vistos como obstáculo nessas conquistas. Cartas régias conclamaram guerra a eles e apoiaram abertamente o massacre.
Até então concentradas no Brasil Central, entre o norte da Bahia e o sul mineiro, essas populações se viram obrigadas a ampliar seus limites para escapar da escravidão. Tribos fugiram para Santa Catarina e outras, até então instaladas no Sudeste, foram vistas por padres franciscanos no Maranhão.
- Estas transformações, impostas pela colonização foram muito desfavoráveis aos índios - opina Jeanne Cordeiro, arqueóloga do Laboratório de Arqueologia Brasileira do Museu Nacional. - Os botocudos tornaram-se vulneráveis e perderam sua herança cultural. Não havia lendas e mitos de origem que os ligassem a esses novos espaços.
Esta falta de identidade se reflete até hoje nas populações remanescentes, segundo Vicensotto. Nos dois povoados de botocudos ainda conhecidos, que reuniriam menos de 100 índios, os adultos lembram de apenas algumas palavras de seu idioma, recorrendo ao português para falar com os filhos.
Botocudos e tupis-guaranis têm idiomas de troncos linguísticos diferentes - e esta incompreensão é um dos motivos por trás da rivalidade histórica entre suas populações. O segundo grupo, no entanto, foi beneficiado por seu comportamento político, que permitiu alianças com o homem branco e um olhar mais benevolente, inclusive na literatura. Em "O guarani", obra que projetou o escritor romântico José Alencar, são os botocudos que atacam o personagem-título, herói do livro.
- Uma série de preconceitos foi atribuída a esta população até o meio do século passado - acusa Jeanne. - Os botocudos foram marginalizados por terem um compromisso com suas tradições e, assim, resistirem à colonização. Negros e brancos, nos últimos séculos, substituíram totalmente o povo nativo no Brasil. Trata-se de um fenômeno que jamais aconteceu, em época ou lugar algum.
Colonizadores e tupis: aliados
Já os tupis, segundo a arqueóloga, aproximaram-se visando à vitória em suas próprias disputas. Em terras fluminenses, por exemplo, as tribos do Rio e Cabo Frio eram rivais. Cada uma, então, aliou-se a um colonizador - a primeira buscou apoio dos portugueses; a outra negociou com os franceses.
Nem mesmo a preguiça, outra característica sempre atribuída aos índios, encontra eco no estilo de vida dos botocudos. Segundo estudos desse grupo, os adultos trabalhavam cerca de 12 horas diárias, em atividades que iam da caça e agricultura à cerâmica.
Aos 13 anos, quando passava por um rito em que ganhava o botoque, o jovem assumia a obrigação de tornar-se útil para a tribo, exercendo alguma atividade que contribuísse para a subsistência de todos.
Eram tribos grandes, que chegavam a 600 pessoas, de organização extremamente complexa e mais descentralizada do que os tupis - conta Jeanne. - Infelizmente para os portugueses, os botocudos não contavam com qualquer noção de metalurgia.
Ainda assim, foram feitos escravos. O resultado é que, hoje, seus povoados não têm sequer 10% do tamanho de séculos atrás.

O Globo, 06/08/2011, Ciência, p. 43

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