OESP, Vida, p. A23
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
20 de Out de 2005
Os números enganam
Marcos Sá Corrêa
A ministra Marina Silva fez muito bem em ir ao outro lado do mundo para colher, em Pequim, na forma de um título de doutora honoris causa da Academia Chinesa de Silvicultura, os louros de sua gestão. No Brasil, atualmente, ela coleciona notas de reprovação. E, o que é pior, uma rara combinação de fatalidade climática com imprevidência humana montou na Amazônia, sua cátedra de desenvolvimento sustentável, a maior fonte de más notícias.
Os rios murchos do Alto Solimões trouxeram à tona a insustentabilidade de populações tradicionais, numa hora em que as políticas oficiais de assentamento multiplicam sua presença nos vazios demográficos da região. O Acre, sede do modelo petista de administração ambiental para a região, pegou fogo como nunca nesta estiagem, porque o governo do engenheiro florestal Jorge Viana tirou o corpo fora da repressão às queimadas. E agora saiu pela culatra a notícia de que o Ibama flagrou fazendeiros raspando ilegalmente a floresta no município paraense de Cumaru do Norte, nos ermos do território brasileiro onde até as lendas costumam passar por verdade.
A história veio fantasiada com números de exuberância amazônica. Os fazendeiros foram multados em R$ 100 milhões, valor que, se não encher os cofres da União, certamente transbordará as páginas dos jornais. Os autos dizem que eles foram apanhados desmatando 30,8 mil hectares num lugar onde as árvores caem 50 mil hectares. Para se ter uma idéia do que quer dizer isso, o País está brigando há um ano para instalar em Santa Catarina o Parque Nacional do Itajaí. Se sobreviver aos embargos, ele terá 57 mil hectares. E com eles será o terceiro, em tamanho, de toda a mata atlântica.
Quer dizer que o caso de Cumaru do Norte é um grande feito do Ibama, certo? Que nada. É pequeno e tardio. Vem com atraso de cinco anos. Na pior das hipóteses, deveria ter acontecido no ano passado, quando o Ministério do Meio Ambiente se armou para prevenir o desmatamento com o Deter, um sistema de monitoramento por satélite capaz de acusar no chão clareiras de 25 hectares. O Deter avisa Brasília em tempo real. Mas o tempo real de Brasília, pelo visto, não é o do Deter. Em Cumaru do Norte, o Ministério do Meio Ambiente levou nada menos de 2 mil clareiras para notar que havia alguma coisa estranha no mapa do município.
Chegaram tão tarde que encontraram o município desfalcado em 75 mil hectares de árvores. Ou seja, a bagatela de 3 mil clareiras, pela medida de foco do Deter. E não é de hoje que elas avançavam por Cumaru do Norte num ritmo extravagante para os padrões de desflorestamento do Pará. Ele se classificou em décimo lugar entre os "50 municípios que mais devastaram em 2004", pela tabela do Instituto do Homem e do Meio Ambiente, o melhor banco de dados sobre a Amazônia.
Em Cumaru do Norte, a farra da derrubada começou na virada do milênio, com a vinda do boi. De lá para cá, o município formou um rebanho de 200 mil cabeças. E pasto para essa boiada toda é coisa que não se abre da noite para o dia. Logo, não passa de conversa para governo dormir a história de que as motosserras clandestinas fugiram recentemente para lá, tangidas pelas reservas criadas na Terra do Meio paraense com a onda de choque que sobreveio ao assassinato da freira Dorothy Stang, em fevereiro.
Quer saber por que o Ibama demorou tanto? Pergunte ao procurador Elielson Ayres de Souza, o homem da Operação Curupira, que meses atrás pôs na cadeia os chefes da quadrilha que arrasava o Mato Grosso do Sul. No Pará, a máquina do Meio Ambiente está pelo menos tão podre quanto a de Mato Grosso do Sul. Mas o procurador gostou tanto do que viu no comando do ministério durante a Curupira, que depois dela se exilou em funções burocráticas no Rio.
Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)
OESP, 20/10/2005, Vida, p. A23
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