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Os índios por eles mesmos

Revista do Terceiro Setor-RETS-São Paulo-SP
Autor: Marcelo Medeiros
12 de Out de 2003

"Antigamente o índio atravessava o rio por cima das pedras, a nado, ou amarrava uns paus fazendo uma balsa, até que em 1.671 começou a chegar o pessoal de fora atrás do ouro. Aqueles exploradores não vinham fazer o bem. Vieram buscar o que não era deles. Eles começaram a se apossar das terras indígenas, que não compraram de ninguém". Esse é o começo de uma história cujo final todos conhecem, mas poucos ouviram o lado das vítimas - no caso os Tumbalalás, que escreveram esse relato. Na maioria dos casos, os fatos são contados por historiadores e antropólogos, mas raramente por quem foi agredido. Desde 2001, um projeto procura mudar esse quadro e transformar índios do nordeste em jornalistas, antropólogos, historiadores e artistas que abordem a própria cultura.

O "Visão dos Índios", iniciativa da ONG Thydêwá, sediada em Salvador, ajuda habitantes de aldeias a produzirem conteúdo para ser publicado e distribuído em escolas de ensino fundamental e médio do nordeste, além de proporcionar troca de informações entre os indígenas. Os maiores objetivos, porém, são fortalecer e divulgar a cultura dos índios.

Além de uma página na Internet, de onde foi retirado o depoimento acima, já foram publicados sete livros, cada um sobre uma nação indígena. Neles, estão registrados com textos e imagens rituais, opiniões políticas e tradições de cada nação, sempre relacionando umas às outras. "São conteúdos transversais", resume Cristina Lima, diretora executiva da ONG. A reivindicação das perdas históricas foi um traço comum a todas publicações. "Muitos se perguntam sobre o que fazer diante da falta de terras e da violência a que estão submetidos", diz. É o caso da índia tupinambá Jamopoty, que no texto publicado no livro de sua tribo afirma: "eu não tenho terra, então luto por mim e por meus parentes para a gente ter o que é nosso". São bastante freqüentes também relatos da luta para manter as tradições indígenas, inclusive com descrições de rituais onde a presença de pessoas de fora da tribo é proibida.

As publicações foram produzidas inteiramente pelos habitantes de aldeias, localizadas em Pernambuco, Bahia e Alagoas. Índios Fulni-ô, Kiriri, Truká, Tupinambá, Kariri-Xocó, Pankaru e Tumbalalá participaram de oficinas de "identidade e expressão criativa" ministradas por integrantes da Thydêwá. Elas duraram de 10 a 20 dias, de acordo com a demanda e tamanho da tribo, e nelas os alunos aprenderam a escrever para o livro e a fotografar. A procura em cada localidade era diferenciada. Em algumas foram os jovens os mais interessados. Em outras, crianças e adultos. Mas em todas o processo foi o mesmo: sair com caneta e papel na mão para registrar o que as pessoas da aldeia sabiam da história da tribo, descrever melhor seus rituais, hábitos e produções materiais, como danças e artesanatos, além de rostos expressivos e a natureza. "É a melhor forma de nós contarmos nossa história, pois é nossa realidade. Tem muito livro que diz coisas que não são verdade", diz Fernando Santos, líder da tribo Pankararu, que envolveu 20 pessoas na produção do livro. A escolha do material a ser publicado foi feita por um "conselho editorial" formado pelos índios.

Entre as descrições feitas por eles está a do Toré, dança típica de tribos sertanejas que faz parte de ritual sagrado de diversas nações indígenas, que o praticam de diferentes formas. Entretanto, em todas os espíritos da natureza são evocados na língua materna dos índios. "O toré significa, para nós, uma oração. Cada canto é uma oração que traz a saúde da gente", escreve o kiriri Rubens no livro de sua tribo.

Educação

As histórias foram escritas em português, apesar de uma versão em línguas maternas, como o tupi-guarani, ter sido imaginada no início do projeto. Nas tribos, contudo, o uso da língua-mãe é apenas oral, isso quando ela ainda é utilizada. Para manter a língua viva, os kariri, por exemplo, investiram a renda obtida com a venda dos livros em professores de tupi que atuarão nas aldeias.

Mas a educação não ficará restrita aos índios. Como parte do projeto, a Thydêwá se encarregou de levá-los às escolas das cidades para compartilhar sua cultura ao vivo e não só por meio dos livros. Em um primeiro momento, algumas crianças ficaram decepcionadas com o que viram. Muitas tribos, depois de séculos em contato com pessoas de fora, ficaram miscigenadas e seus componentes não apresentam mais a cor e os traços característicos - o que não os faz menos índios, é bom esclarecer. "As crianças possuem uma visão muito estereotipada", diz Cristina. "Querem encontrar gente pintada e com penas, mas os índios explicam o que aconteceu e elas entendem".

Entre danças e palestras, os alunos aprendem a valorizar essa cultura cada vez mais deixada de lado e a entender por que isso aconteceu. "Essa troca é muito importante. Um dos valores mais prezados pelos índios é a solidariedade. Entre eles o grupo é mais valorizado que o indivíduo. Além disso, preservam a natureza em todas as suas formas, desde a formiga até a árvore", diz Sebastian Gerlic, presidente e fundador da ONG.

Foi isso que mostraram em abril de 2002, quando foi organizada uma exposição no Parque da Cidade, em Salvador, onde índios tupinambá e kiriri mostraram seus trabalhos. Foi feita uma grande produção, com fotos em tamanho natural e inseridas na paisagem. Fotografias de pássaros, por exemplo, foram expostas nos galhos de árvores. Centenas de pessoas passaram por lá a e aprenderam mais sobre a cultura dos povos originais do Brasil.

Todas essas atividades fizeram os índios participantes do projeto quererem aumentar o contato com as crianças das cidades. Passaram a procurar escolas para fazerem apresentações e conversarem com alunos, ao invés de esperarem o contato da direção. E eles querem mais. O projeto "Cantando as culturas dos Índios", que busca fortalecer as culturas tradicionais por meio de música e danças, pretende gravar um CD em março, com a participação de crianças das escolas indígenas. Elas cantariam as músicas do toré.

Porém, além de ensinar, os índios querem aumentar seu conhecimento. Cada livro teve tiragem de 3 mil exemplares e 2 mil foram destinados aos índios, que ficam com toda a arrecadação da venda. Dos livros a que têm direito, as tribos reservaram 500 para trocas com bibliotecas, pessoas ou outras nações indígenas interessadas no intercâmbio cultural. O nome da iniciativa é "Índios Lendo". O restante da tiragem vai para o patrocinador do "Índios na Visão dos Índios", governo da Bahia, que apoiou a iniciativa, e para a Thydêwá.

Assim, as publicações e atividades da ONG são a prova mais concreta de que índio não quer apito, quer respeito. Ou, como afirma o pankaru Fernando Santos, "isso tudo é muito bom pro índio, acordar e falar sobre sua realidade. É o caminho certo para ganhar respeito".

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