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Os índios estão voltando

O Liberal-Belém-PA
Autor: Florencio Almeida Vaz
18 de Abr de 2005

'E novamente é o dia do índio. É pra rir ou pra chorar? É um dia de festa ou lamentação? Temos que lamentar, se pensarmos nas centenas de Terras Indígenas (TI) que ainda aguardam demarcação ou homologação, enquanto são invadidas por fazendeiros ou madeireiros; na baixíssima expectativa de vida dos índios brasileiros, de 43 anos, em média; na 21ª. criança Guarani Kaiowaque morreu de desnutrição em Dourados (MS) sábado passado, e nas outras que morrerão nos próximos meses. A tragédia Kaiowa não é de hoje.

Há uma década dezenas de jovens se suicidavam por ano. Em 1980 Marçal Tupã-y, um combativo líder dos Guarani na região, foi escolhido para falar ao papa João Paulo II, na sua primeira visita ao país. Anos depois quando o papa voltou ao Brasil, Tupã-y já não vivia mais, foi assassinado em 25 de novembro de 1983 pelos que não queriam a demarcação das terras dos Guarani. Paremos nestes exemplos, pois temos motivos para muita festa também.

Se em 1971 apenas 97 mil pessoas eram contadas como indígenas, e os militares esperavam nosso fim iminente pela política de assimilação à sociedade nacional, o censo do IBGE de 2000 contou 734.127 pessoas que se auto-identificavam indígenas. Temos aí um crescimento vertiginoso do número de índios que vivem em aldeias e, mais interessante, vários grupos voltaram a seassumir como indígenas, deixando cair a máscara de 'caboclos' (aqueles que não são mais índios e que nunca chegarão a ser brancos). Nas cidades também milhares de pessoas perderam a vergonha e passaram a se assumir como indígenas. E essa tendência continua.

Certamente o censo de 2010 vai constatar 2 milhões de indígenas, pelo menos. Paralelo ao crescimento numérico há uma melhora qualitativa na participação política dos índios. Crescem as associações indígenas em todo o país, pressionando o Estado pelo respeito aos direitos garantidos na Lei e desenvolvendo projetos de apoio e capacitação às suas comunidades; são dezenas de vereadores e alguns prefeitos eleitos nos últimos anos; muitos jovens conseguiram entrar nas universidades e alguns já estão até na pós-graduação (sem contar ainda com o impacto das cotas para os índios). Os resultados se farão notar muito em breve.

O Presidente Lula bem que tenta, mas não consegue ignorar o crescente descontentamento das lideranças indígenas com a falta de uma política indigenista condizente com o que ele prometeu quando candidato. A homologação da TI Raposa Serra do Sol (RR) é uma tentativa de acenar positivamente aos índios e seus apoiadores. Afinal aí vêm as eleições de 2006...

A tendência é que a médio prazo o movimento indígena no país deverá superar suas debilidades internas e se aproximar bem mais de outros movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST). Será mais presente no meio acadêmico e nas grandes cidades,
e terá um maior poder de barganha política.

No mundo da literatura, das artes e na mídia já não é incomum ver rostos de indígenas. A maioria se identifica ainda como 'descendentes' de índios. Mas até isso já é um avanço. É indígena o rosto, o talento e a graça adolescente de Eunice Baia, dos filmes 'Tainá' I e II. É indígena a beleza e o encanto de Suyane Moreira nas passarelas e capas de revistas da moda. Causou um bom impacto a presença e a divina voz da amazonense Márcia Siqueira, nas cidades por onde passou no Projeto Pixinguinha deste ano.

Sem esquecer do reconhecimento incontestável que merece a atriz de cinema, teatro e televisão Dira Paes. Possivelmente os que virão depois já se dirão simplesmente 'indígenas' e não 'apenas descendentes' de índios. Aliás, isso é o que já vem fazendo muito bem no Brasil e na Europa o escritor e educador Daniel Munduruku. 'Sou índio sim' é o discurso de Fidelis Baniwa, o Joe Karipuna da série Mad Maria.

O jovem estudante de História na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), que tem no currículo a participação em várias peças de teatro, cinema e comerciais na TV, foi selecionado entre dezenas de concorrentes, não somente por ser índio e bonito, mas pelo talento, que pôde ser comprovado na televisão. O pioneirismo destes parentes está elevando a auto-estima e o orgulho da até então envergonhada população indígena. Afinal, é bonito ser índio ou índia. Ainda estamos muitos anos atrás dos negros, mas a gente chega lá.

É muito reconfortante observar essa resistência e afirmação da identidade indígena. O Brasil não-indígena e pluricultural também ganha muito com isso. A sabedoria e espiritualidade desses povos é uma riqueza enorme, disponível não para a biopirataria e lucro de uns poucos, mas para favorecer o bem-estar de todos, índios e não-índios. Mas é preciso se aproximar sem os arraigados preconceitos e discriminações. Os índios não são selvagens, preguiçosos, incapazes, inferiores ou superiores - são simplesmente diferentes. Não precisam da pena de ninguém, precisam sim de terra, solidariedade e respeito a seus direitos, à sua dignidade. É o que falta no Mato Grosso, e ainda em muitos rincões do Brasil.

É da sabedoria indígena a idéia de que para além dos sofrimentos nós jamais seremos derrotados, pois somos de uma ascendência milenar e divina, somos filhos do Sol e da Mãe Terra. Acreditamos também que temos a missão de evitar a destruição do mundo, as doenças e a morte das pessoas. Por isso cantamos e dançamos em nossos rituais. A dança é sagrada, traz saúde, rejuvenescimento, harmonia e união. Quando dançamos Deus, os antepassados e os espíritos dançam com a gente. Os povos que pararam de dançar morreram.

Finalizo com o que disse o profeta Tupak Katari no altiplano dos Andes, no auge da escravidão e dos massacres comandados pelos espanhóis, há mais de 200 anos: 'Nós voltaremos e seremos milhões!' Senhoras e senhores, a viagem de volta já começou.'

O autor - Florêncio Almeida Vaz, do povo indígena Maytapu (rio Tapajós - Pará), ativista do movimento indígena na Amazônia, nasceu em 1964, na aldeia de Pinhél. É frade franciscano, formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
professor de Sociologia na Universidade Federal do Pará (UFPa) em Santarém, e atualmente doutorando em Ciências Sociais/Antropologia na Universidade Federal da Bahia (UFBa). Contato: florenciovaz@yahoo.com.br

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