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Os bastidores da história dos indígenas mortos em fevereiro na fronteira da Venezuela com o Brasil

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Autor: María Ramírez
21 de Mai de 2019

Na madrugada de 22 de fevereiro, enquanto a oposição venezuelana se preparava para levar ajuda ao país, um comboio de veículos militares se dirigia para a aldeia indígena de Kumarakapay em direção à fronteira com o Brasil . Membros da comunidade pemon , uma tribo cujo território também inclui a rota para o estado brasileiro de Roraima , queriam manter a fronteira aberta para garantir a chegada da ajuda, apesar da ordem do presidente Nicolás Maduro de que os militares fechassem a divisa.

Antes do amanhecer, os camponeses ordenaram que os veículos militares que estavam indo para a fronteira voltassem, lembrando-os da autonomia da tribo sobre o seu território, garantida constitucionalmente. Apesar disso, o comboio do Exército avançou rapidamente e os integrantes da tribo só conseguiram parar o último dos quatro veículos, um jipe com quatro oficiais da Guarda Nacional, que garantiram estar trabalhando em um projeto de mineração.

Acreditando que os policiais iriam bloquear a ajuda, vários camponeses os tiraram à força do veículo, tomaram suas armas e os detiveram, de acordo com 15 moradores. Outros soldados, que pararam poucos metros à frente, saíram de seus veículos com as armas em punho e se aproximaram. Gritos foram ouvidos e um deles atirou no chão, de acordo com os indígenas e um vídeo feito com um celular. Os soldados restantes começaram a atirar várias vezes na direção da aldeia enquanto corriam de volta para os veículos.

O tiroteio deixou dezenas de camponeses feridos e três mortos, um confronto excepcionalmente sangrento entre as tropas venezuelanas e os indígenas . Vinte e três membros da tribo foram presos - alguns deles dizem ter sido espancados sob custódia. Os camponeses também mantiveram mais de 40 soldados como reféns, que sofreram mordidas severas após terem sido deixados seminus em colinas cercadas de formigueiros, em punição pelos assassinatos, de acordo com entrevistas com membros da tribo.

Os incidentes são um exemplo claro de como a crise econômica e política da Venezuela minou a relação estreita que existia anteriormente entre as comunidades indígenas mais pobres e o movimento socialista iniciado há duas décadas pelo antecessor de Maduro, o presidente Hugo Chávez.

- Não conseguirmos entender o motivo da atitude do regime de Maduro de usar armas contra os índios - disse Guillermo Rodríguez, irmão de Zoraida Rodríguez, uma das três pessoas mortas em Kumarakapay.

Depois de fugir da violência no final de fevereiro, Rodríguez mora atualmente na cidade fronteiriça brasileira de Pacaraima. Ele é um dos quase mil membros da tribo pemon que cruzou o Brasil, muitos a pé, de acordo com o escritório brasileiro da Organização Internacional para as Migrações (OIM). Lá, vivem em cabanas de madeira que construíram com as próprias mãos ou acampam sob lonas doadas pela agência de refugiados das Nações Unidas.

O incidente ocorreu após as tensões no sul da Venezuela entre militares e membros da tribo, envolvidos na mineração informal de ouro. Eles se queixam de sofrerem extorsão e intimidação.

A Guarda Nacional, o Ministério da Informação e o Ministério da Defesa não responderam aos pedidos de comentários. O governo de Maduro negou maltratos contra os Pemones no passado e afirma que os cerca de 30 mil indígenas, que vivem no sul da Venezuela e no norte do Brasil, se beneficiaram de recursos estatais e de maior autonomia.

O governo também não comentou as acusações de extorsão, mas nos últimos anos Maduro acusou líderes da oposição de estarem envolvidos em "máfias" de ouro. Em entrevista à Reuters em março, o governador do estado de Bolívar, Justo Noguera, do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), de Maduro, culpou membros armados da tribo pemon pela violência na região, sem fornecer provas. Ainda assim, garantiu que o incidente de fevereiro está sob investigação.

- Infelizmente houve atos terroristas, eles atacaram uma comissão do nosso Exército Bolivariano que só levava equipamentos de comunicação - disse Noguera. - Havia elementos na pacata comunidade de Kumarakapay que estavam armados e a comunidade os rejeita.

Detalhes de tortura com formigas
O líder opositor Juan Guaidó, que invocou a Constituição em janeiro para se autoproclamar presidente interino da Venezuela, liderou a tentativa frustrada de atravessar comboios de ajuda através das fronteiras da Venezuela com o Brasil e a Colômbia, com apoio dos Estados Unidos. Maduro, por sua vez, classificou a iniciativa como uma invasão disfarçada de Washington e disse que se os EUA quisessem ajudar a população deveriam suspender as sanções econômicas.

Os líderes indígenas de Kumarakapay foram os primeiros entre as principais comunidades pemon na região a apoiar abertamente o plano de ajuda. Quando os moradores ficaram sabendo dos assassinatos em 22 de fevereiro, um grupo agrediu os quatro membros da Guarda Nacional presos por eles naquela manhã, segundo dois camponeses. No mesmo dia, cerca de 10 pemons da aldeia de Maurak prenderam outros 42 membros da Guarda Nacional em um pequeno aeroporto na cidade de Santa Elena, a cerca de 10 quilômetros da fronteira com o Brasil e a 75 quilômetros ao sul de Kumarakapay, de acordo com um líder indígena.Como retaliação, o grupo levou os soldados para uma pequena fazenda perto da selva e ordenou que se sentassem em formigueiros, disse um segundo líder, que também pediu para não ser identificado. Mordidas de formigas "de fuego" podem ser dolorosas e são conhecidas por causar bolhas graves o suficiente para exigir cuidados médicos. Outros soldados foram amarrados e espancados. Um segundo líder, que também pediu para permanecer anônimo, relatou que outros indígenas colocaram pimentas na boca e nas genitais dos soldados.

- Tudo estava fora de controle.

Nem todos os pemons concordaram com os castigos e alguns se opuseram à prisão. O Conselho Pemon não respondeu aos pedidos de comentários.

No dia seguinte ao tiroteio, em 23 de fevereiro, os moradores de Kumarakapay tentaram impedir que outro grupo de veículos militares chegasse à fronteira. Quatro moradores chamaram o general José Montoya, comandante da Guarda Nacional no estado de Bolívar, para convencer os militares dos comboios a manter a fronteira aberta. No entanto, soldados da Guarda Nacional algemaram quatro indígenas, cobriram seus rostos com máscaras e os colocaram dentro de veículos, segundo o indígena Aldemaro Pérez. Montoya acabou detido e os cinco foram levados para uma base do Exército chamada Escamoto.

- Ah, vocês são os pemons valentes? Vão morrer aqui - gritou um dos policiais, segundo Pérez.

Os detalhes foram confirmados à Reuters por três outros integrantes da tribo detidos e por um representante da organização de direitos civis Foro Penal. O governador do estado de Bolívar, no entanto, negou que os presos tivessem sido espancados sob custódia.

- Eu pessoalmente supervisionei o tratamento dos prisioneiros, nenhum deles foi espancado - afirmou.

A Reuters não pôde determinar por que a Guarda Nacional usou veículos da polícia para transportar os detentos para a base do Exército, nem as razões que levaram à prisão de Montoya, destituído do cargo dias depois, de acordo com uma resolução publicada no Diário Oficial, sem especificar as causas da demissão.

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