VOLTAR

Oposição verde-oliva

CB, Brasil, p. 12-13
17 de Dez de 2003

Oposição verde-oliva
Incra quer usar área do Exército, de cerca de mil quilômetros quadrados, para assentar sem-terra. Militares negam concessão usando o argumento, falso, de que região seria utilizada para treinamento com foguetes

Lúcio Vaz
Do Estado de Minas

Com o programa de reforma agrária emperrado por falta de recursos, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) quer utilizar áreas do Exército para assentar os sem-terra. São 649.751 hectares de campos de instrução para o adestramento de tropas. 0 Incra já pediu a concessão de parte do maior campo, localizado em Formosa (GO), distante 80 quilômetros de Brasília, com 104 mil hectares, cerca de mil quilômetros quadrados.
O valor de mercado da área total de Formosa é de cerca de R$ 350 milhões. Ao lado dela, está um acampamento com 141 famílias sem-terra, coordenado pela Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Elas aguardam o assentamento.
O Exército negou a concessão terra fértil dos 4 mil hectares solicitados pelo Incra, mas arrenda 16 mil hectares do campo para a criação de gado - cerca de 4,5 mil cabeças. A área arrendada a 68 fazendeiros rende R$ 19 mil por mês ao Exército, ou R$ 228 mil por ano. O comandante do campo, tenente-coronel César, afirma que o valor do arrendamento "é simbólico". E realmente é simbólico. Segundo uma imobiliária de Formosa, o preço de mercado atinge R$ 480 mil por ano. Se a mesma terra fosse arrendada para plantação de soja, o valor subiria para R$ 4,3 milhões ao ano.
Informação falsa
Na justificativa para negar a concessão dos 4 mil hectares, em ofício datado de 20 de novembro, o Exército apresenta ao Incra uma informação falsa. Depois de informar que o campo é a única área no Brasil que propicia a realização de tiro com o sistema de foguetes Astros, o Exército assegura que a "parcela pretendida é exatamente a área de localização das posições de tiro das baterias, não havendo alternativa para a realização de tiro". 0 alcance dos foguetes chega a 40 quilômetros.
Em visita ao Campo de Instrução de Formosa, o Estado de Minas verificou que as posições de tiro ficam distantes pelo menos 15 quilômetros da área pretendida pelo Incra. Além disso, essa área é separada do restante do campo pela estrada estadual GO-346, o que impossibilita o lançamento de foguetes no local. Finalmente, as posições de tiro não contam com área construída. Trata-se apenas de uma pequena área desmatada, que pode ser facilmente transferida para outro local.
0 presidente do Incra, Rolf Hackbart, relatou o resultado de reuniões feitas com representantes do Exército na sede do instituto. Os militares disseram que podem ceder algumas áreas ao Incra, mas acrescentaram que o volume de terras disponíveis seria pequeno e, em sua maior parte, inadequadas à agricultura. "São pedreira", argumentaram.
Não é essa a realidade do campo de Formosa. Com cerca de 70 quilômetros de extensão - quase a distância de Formosa a Brasília -, numa região plana e bem abastecida de água, a área é cercada por grandes fazendas de soja a leste e a oeste, o que indica a boa qualidade do solo. A divisa do campo é feita pelos rios Preto e Bezerra. As "áreas de impacto", onde são feitos exercícios de tiro de fuzil, metralhadora, morteiro, canhão e foguete, correspondem a cerca de 10% do total do campo. 0 espaço é tanto que cerca de 15% do terreno -justamente as regiões mais férteis - estão arrendados para a criação de gado. 0 restante forma reserva ecológica com vegetação e fauna típicas do cerrado.
0 Incra queria, inicialmente, assentar 200 famílias no local para desenvolver um projeto de desenvolvimento sustentado, com a coleta de pequi e baru - oleaginosa típica da região, semelhante ao amendoim. Mais tarde, tentaria a concessão dos 15 mil hectares, localizados às margens da BR-020, para assentar mil famílias, que se ocupariam da produção de hortaliças e legumes. Os lotes ficariam, em média, a dez quilômetros do centro de Formosa.

Flagrados ao caçar e pescar

A desapropriação da área de 104 mil hectares do Campo de Instrução de Formosa foi iniciada em 1969 e concluída em 1972, no auge da ditadura militar, durante o governo de Garrastazu Médici. A maior parte do campo foi mantida como reserva ecológica, o que sempre atraiu a atenção de caçadores e pescadores, inclusive militares. O ex-presidente Figueiredo costumava pescar na Lagoa Grande, segundo informa um ex-comandante do campo. Em 1999, militares foram flagrados com couros e cabeças de veados, tucanos e macacos abatidos no campo durante treinamento militar.
Foram desalojados da área 414 proprietários rurais. A maior fazenda, Bom Sucesso, tinha cerca de 14 mil hectares. 0 ex-comandante do campo major Nova da Costa, 45 anos, hoje na reserva, afirma que nem todos os antigos proprietários foram indenizados. "Quem não tinha a documentação completa não recebia a indenização. O pagamento era feito em cima da parte que estava documentada. Como era o período da ditadura, todos tinham medo de falar. E aquilo passou batido", diz Costa, que comandou o campo de 1996 a 1997.
Desgosto
0 major reformado afirma que muitas pessoas que nasceram na região e tiveram as terras desapropriadas "morreram de desgosto", porque não puderam mais visitar as antigas moradas. 0 Exército passou a proibir a entrada dessas pessoas no campo. Ele acrescenta que o valor pago foi pequeno, porque "aquelas terras não tinham valor naquela época".
O atual comandante do campo, tenente coronel César, diz que a caça e a pesca são totalmente proibidas. Ele conta com um grupamento de 70 homens para vigiar o local. A matança de animais silvestres ocorrida em 1999, durante o treinamento militar da tropa da 11ª.Região Militar, foi registrada em fotografias. Um soldado armado, com o fuzil cruzado em frente ao corpo posou em frente a um varal improvisado que exibia couros e cabeças de veados, tucanos e macacos, patos. A foto foi publicada no jornal O Globo, no dia 7 de outubro daquele ano. O Exército abriu inquérito policial militar (IPM), que resultou na punição dos militares envolvidos. (LU)

Em abril, Miguel Rosseto disse que teriam prioridade os assentamentos com trabalhadores já acampados. Coordenador dos sem-terra, porém, garante que não quer briga com Exército nem pretende ocupar área militar.

Equívoco fez surgir acampamento

Lucio Vaz

Um acampamento com 143 famílias de trabalhadores rurais sem terra está instalado, há oito meses, no acostamento da BR-020, exatamente em frente ao trecho do campo de instrução do Exército reivindicado pelo Incra. 0 coordenador do acampamento, ligado à Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Marcelo França Gomes, 29 anos, afirma que o acampamento foi provocado "por uma palavra errada do ministro".
Gomes lembra que, no início de abril, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, afirmou que teriam prioridade nos assentamentos os trabalhadores sem terra que estivessem acampados. "0 governo disse que ia assentar quem estivesse acampado. Aí surgiu o acampamento", disse ele, que nega qualquer ligação com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). "Deus me livre", comentou.
Questionado se o grupo aguarda o assentamento nas terras do Exército, Gomes desconversou: "Se negociarem isso, seria bom. Mas acho difícil darem terras do Exército para a reforma agrária. Se derem, será a primeira vez no Brasil". Por que, então, o acampamento foi montado exatamente em frente às terras formalmente solicitadas pelo Incra? Gomes explica que o acampamento foi montado próximo ao povoado de Bezerra, onde existe um posto de saúde e onde os trabalhadores podem fazer alguns "bicos".
Barracas vazias
Muitos realmente conseguem trabalhos eventuais no povoado. Na tarde do dia 9 deste mês, a maioria das barracas de lona estava vazia. Havia mais crianças do que adultos no acampamento. Todas sem escola, sem acesso a serviços de saúde e muito mal alimentadas. Numa barraca, um sem terra oferecia pequis, apanhados nas matas próximas, possivelmente nas terras do Exército.
Ronaldo Campos, da direção do MST no Distrito Federal, afirma que "toda terra de grande extensão que não tem uso" deveria ser usada em projetos de reforma agrária. Mas acrescenta que considera "impossível" a concessão de terras do Exército para assentamentos de sem terra. "Deveria ser passada para o povo, mas, na minha visão, isso é impossível. Seria importante para o País, mas não queremos brigar com o Exército."

Movimento é maior em julho

Distante cerca de 20 quilômetros do centro de Uberlândia, o campo de instrução utilizado pelo 36o Batalhão de Infantaria Motorizada (BIMtz) está cercado por plantações de soja, fazendas de criação de gado e aviários gigantescos. Só a fazenda Esperança, localizada a menos de um quilômetro de um estande de tiros, cria 36 mil frangos. Na área de 1,5 mil hectares do campo de instrução são feitos adestramento de tropas e executados tiros de fuzil, metralhadora, morteiro e canhões de até 106 milímetros. Mas o movimento de tropas é intenso apenas no mês de julho.
O campo forma uma reserva ecológica de fauna e flora muito ricas. Como um único militar vigia o campo, que tem extensão de cerca de sete quilômetros, é praticamente impossível evitar as caçadas e as pescarias. São comuns na reserva animais como lobos, onças, seriemas, tatus, capivaras. Neste ano, chegou a ser planejada uma caçada desses animais, para utilização em instrução de sobrevivência na selva, mas o comandante do 36o BIMtz mandou suspender o abate. Quis evitar os desgastes provocados pela caçada ocorrida no campo de Formosa.
A área do campo é plana e banhada por um rio forte. A vegetação é típica do cerrado, com árvores baixas, pouco copadas, e muitos arbustos. Como os campos em volta são tomados por lavouras de soja e pastos para o gado, o campo de instrução foi transformado numa reserva ambiental que mantém as características originais da região.
0 comandante do 36o BIMtz, coronel Raul Borges, afirma que a extensão do campo é suficiente até para a realização de tiros de morteiro, com alcance de quatro quilômetros, e de canhão, com alcance entre mil e dois mil metros. Ele afirma que as manobras ocorrem entre março e novembro, mas a reportagem apurou que somente em julho o regimento completo é instalado no campo de instrução. (LU)

Para militares, terra é imprescindível

O Centro de Comunicação Social do Exército (Cecomsex) afirma que as terras da União utilizadas como campo de instrução são produtivas e "imprescindíveis" ao preparo e adestramento do Exército. "Tais como as reservas indígenas, as áreas de preservação ambiental, os parque nacionais, as reservas biológicas e os patrimônios histórico-culturais, não são comparadas às terras improdutivas, por terem destinação específica", diz o Cecomsex.
0 Exército também argumenta que a desativação e a limpeza dessas áreas, utilizadas há mais de 50 anos, implicaria em elevados custos e demandaria longo tempo. "A despeito de todas as medidas de segurança adotadas nas instruções de tiro, sabemos ocorrerem lamentáveis incidentes com mutilações e perdas de vida de pessoas, que, imprudentemente, invadem esses campos."
0 Cecomsex acrescenta que os campos de instrução "asseguram à tropa o ambiente necessário à prática dos ensinamentos transmitidos em salas de aula e nos quartéis. Somente nessas áreas é possível reproduzir, com a dimensão requerida, a dura realidade do combate e, em alguns deles, executar tiros reais dentro das mais rígidas normas de segurança. Somente no campo é possível submeter o combatente a condições adversas e a elevadas exigências de vigor físico, rusticidade, coragem, cooperação e iniciativa".
Segundo o centro de comunicação social, "equivocadamente, tem sido atribuída ao Exército a posse de grandes extensões territoriais. Confundem-se campos de instrução com áreas "afetadas" ao uso especial do Exército. Essas áreas têm por objetivo maior a preservação da integridade desses bens da União, que representam considerável acervo ecológico. Estão localizadas no Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins".
Finalmente, o Cecomsex destaca "o reconhecido trabalho de preservação ambiental que o Exército executa em seus campos de instrução, tanto em relação à fauna e à flora quanto na conservação de mananciais que abastecem cidades vizinhas. Convênio firmado entre o Exército e Ibama reafirma a credibilidade que a Força Terrestre goza no que concerne à proteção dos ecossistemas". (LV)

MST recebe críticas
Pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Agricultura ao Instituto Vox Populi, 78% dos brasileiros acreditam que a reforma agrária será positiva. Mas a maioria não concorda com os métodos adotados pelo MST.o 75% dos entrevistados disseram ser contrários às invasões de terras e prédios públicos; e 58% classificaram o movimento como "violento e de caráter político".

CB, 17/12/2003, Brasil, p. 12-13

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.