VOLTAR

Opinião, por Daniel Massa (professor e criador da Biblioteca Indígena do Xingu): "Que o dia 9 de agosto nos traga luz para ver que, obviamente, o futuro é ancestral"

Lula Cerda/IG - https://lulacerda.ig.com.br/opiniao
09 de Ago de 2023

Opinião, por Daniel Massa (professor e criador da Biblioteca Indígena do Xingu): "Que o dia 9 de agosto nos traga luz para ver que, obviamente, o futuro é ancestral"

BLOG Opinião, por Daniel Massa (professor...

Nesta quarta (09/08), comemora-se o Dia Internacional dos Povos Indígenas, criado pela ONU, em 1995, para homenagear os povos originários.

Tenho cultivado, ao longo da vida, certa aversão a datas comemorativas em geral. Nesse caso específico, eu me lembro do "Dia do Índio", em 19 de abril, quando a escola me mandava para casa com um cocar de papel na cabeça e orientado a dar gritinhos agudos ao encontrar meus pais.

No entanto, tendo a pensar que as datas comemorativas podem ser também importantes. Afinal, se o 19 de abril traz a reprodução de uma caricatura desrespeitosa e desinformada sobre os povos indígenas, o dia também serviu para que Baby do Brasil compusesse uma ótima música nos lembrando que "todo dia era dia de índio".

É neste ponto que sugiro, então, um exercício: que 9 de agosto nos permita uma reflexão sobre o presente. Para isso, podemos começar com os dados mais recentes do Censo, divulgados esta semana. Segundo o IBGE, o Brasil conta hoje com 1,7 milhão de indígenas, um crescimento de 89% em relação ao Censo de 2010. Esses dados consolidam um fenômeno observado desde 1991, com aumento exponencial da população indígena no País.

Isso, claro, não tem relação com altas taxas de natalidade, mas com um fenômeno conhecido por antropólogos como etnogênese. O Instituto Socioambiental (ISA), que faz um trabalho incrível e necessário, define como etnogênese como a construção de uma autoconsciência e de uma identidade coletiva contra uma ação de desrespeito (em geral, produzida pelo Estado nacional), com vistas ao reconhecimento e à conquista de objetivos coletivos.

Nesse sentido, penso que temos muito a comemorar. Nos últimos anos, o protagonismo indígena tem crescido em diversas áreas na sociedade. No Congresso Nacional, pudemos observar finalmente o que parece ser a formação de uma bancada indígena, com cinco deputados.

Mais duas vitórias políticas recentes compõem este cenário. A principal é a criação do Ministério dos Povos Indígenas, sob a liderança da ministra Sônia Guajajara. No entanto, não menos importante, é a escolha de Joenia Wapichana para ser a primeira indígena a presidir, veja você, a Fundação Nacional do Índio, que já existe há mais de 50 anos! É pouco, sabemos, mas, como disse sabiamente o poeta, "deixemos o pessimismo para dias melhores".

E fica fácil ser otimista quando observamos o número de artistas indígenas tornando-se referência em suas áreas de atuação. Escritores, como Ailton Krenak, Daniel Munduruku e Davi Kopenawa, se tornaram referência na literatura e grandes pensadores contemporâneos. No cinema, não posso deixar de citar meu grande amigo Takumã Kuikuro, que tem viajado o mundo, ganhando o reconhecimento do público.

Na fotografia, nas artes plásticas, na moda... em todos os setores, temos figuras indígenas como protagonistas. É esse protagonismo que move o fenômeno da etnogênese. As redes sociais costumam repetir o clichê de que representatividade importa. Mas importa mesmo: quanto mais indígenas ocuparem espaços de protagonismo na sociedade brasileira, mais poderemos ver o resgate da ancestralidade dos povos tradicionais.

No Rio, onde moro há 10 anos, o Censo mais recente apontou uma população de 6.939 indígenas. Sim, pessoas indígenas vivem nas grandes cidades também, e isso não apaga sua identidade étnica. Aliás, o que seria do carioca sem a sua ancestralidade indígena? Nem o gentílico existiria.

Em Botafogo, o antigo Museu do Índio, importante espaço de encontros e pesquisas, reabrirá no segundo semestre como Museu dos Povos Indígenas depois de quase sete anos fechado. Serão diversas exposições e eventos para comemorar os 70 anos de sua fundação.

São muitas boas notícias, mas o otimismo não nos cega nem nos acomoda. E é preciso estar atento e forte porque a história nos ensinou a ser assim. É preciso, por exemplo, cobrar das autoridades o que foi prometido em relação à Aldeia Maracanã. É preciso também resistir à pressão de grupos internacionais que querem expulsar a aldeia Ka'Aguy Hovy Porã, localizada em Maricá, da área de preservação ambiental onde os guarani vivem. É preciso estar atento ao garimpo na terra yanomami, aos grileiros no interior do Pará, aos madeireiros e narcotraficantes nas fronteiras amazônicas. É preciso se posicionar contra o Marco Temporal, um ataque aos direitos constitucionais dos povos indígenas.

Em julho, estive por dez dias na aldeia Ipatse, do povo kuikuro, no Território Indígena do Xingu. Pude rever amigos, ver seus filhos crescidos, participar dos rituais com a aldeia. Pude reencontrar a Biblioteca Indígena do Xingu, uma das coisas mais bonitas que já vivi enquanto professor. E pude sobretudo contar com a generosidade do povo kuikuro, sempre disposto a compartilhar seu conhecimento conosco, que perdemos há algum tempo a capacidade de ver o óbvio.

Termino, assim, com Caetano Veloso, que em "Um índio", nos diz: "E aquilo que nesse momento se revelará aos povos / Surpreenderá a todos não por ser exótico / Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto / Quando terá sido o óbvio".

Que o dia 9 de agosto nos traga luz para ver que, obviamente, o futuro é ancestral.

Daniel Massa é poeta e professor. Trabalha nas áreas de Literatura e Língua Portuguesa em escolas do Rio. É um dos idealizadores da Biblioteca Indígena do Xingu. "Não Tem Nome de Quê" (2021, editora BR75) é seu livro de estreia, além do "De repente vale mesmo a pena é ir a pé" (2022, Lluvia Livro) e o recente romance "Fio d'água" (7 Letras), ambientado no rio Negro, desde São Gabriel da Cachoeira até Manaus.

https://lulacerda.ig.com.br/opiniao-por-daniel-massa-professor-e-criado…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.