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As ONGs e o Estado

OESP, Notas e Informacões, p. A3
04 de Set de 2004

As ONGs e o Estado

As Organizações Não-Governamentais (ONGs) são uma demonstração de vitalidade do espírito público e comunitário. Através delas, a sociedade participa ativamente do debate sobre questões de interesse coletivo. E, por meio do voluntariado, elas dão soluções práticas a problemas sociais concretos e chamam a atenção da população para questões mal atendidas pelas políticas públicas, pressionando o governo de forma legítima.
Essa é a missão ideal das ONGs, que muitas cumprem com seriedade e eficiência, mas nem todas, como mostrou o "Dossiê Estado" publicado na edição de domingo passado. O minucioso levantamento mostra que a disseminação das ONGs, um processo sem controles e que muitas vezes se desenvolve com o estímulo indevido de governos, produziu distorções. Há entidades que fazem benemerência para seus próprios diretores; outras competem em condições desiguais com empresas privadas; e existem, ainda, ONGs que não passam de simples terceirizações de serviços do Estado, muitas vezes utilizadas pelos governos para burlar as leis de controle dos gastos públicos, desde a Lei de Licitações até a Lei de Responsabilidade Fiscal.
Aumentam os casos em que a interação entre ONGs e governo é tão profunda que já não se distingue a verdadeira natureza dessas entidades. São as "organizações neogovernamentais", como as chamou o ex-presidente Fernando Henrique. Segundo pesquisa realizada pelo Centro de Estudos do Terceiro Setor da Fundação Getúlio Vargas com mais de 3 mil ONGs, 55% delas se mantêm com recursos públicos. Muitas são meras repassadoras de recursos governamentais ou não passam de prestadoras de serviços utilizadas pelo governo para terceirizar atividades. No ano passado, o governo federal transferiu R$ 1,386 bilhão para instituições privadas sem fins lucrativos, isto é, para ONGs. Dos R$ 14,2 bilhões que a União gastou na aquisição de bens e serviços, R$ 6,9 bilhões foram contratados sem licitação e parte considerável desse dinheiro destinou-se às ONGs dispensadas legalmente de licitação por sua "notória especialização".
Com esse dinheiro fácil e farto à disposição, não surpreende que, no cadastro da Receita Federal onde se inscrevem as organizações não-governamentais, o número de entidades tenha saltado de 220 mil, em 1991, para 453.278, hoje. Embora não exista um censo preciso das ONGs, estima-se que existam mais de 200 mil em atividade. Também não surpreende que existam em funcionamento apenas 1.326 Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), criadas por uma lei de 1999 para forçar a migração das ONGs para um regime em que se torna obrigatória a prestação de contas e a assinatura de contratos de gestão, mas permite a remuneração dos diretores.
Afinal, como mostra o "Dossiê Estado", muitas ONGs remuneram seus diretores por baixo do pano e têm isenções fiscais, recusando-se, portanto, a aceitar obrigações mais rigorosas.
Mas, se existem ONGs que lesam seus contribuintes, desviando recursos, concorrem com a iniciativa privada em desigualdade de condições e se prestam a assumir funções típicas do governo, para que este contorne a Lei de Licitações, existem também, e em grande número, organizações não-governamentais que prestam relevantes serviços ao País. Em São Paulo, por exemplo, organizações sociais administram hospitais públicos com grande eficiência e economia. O "Dossiê Estado" mostrou como a Amazonlink.org, uma ONG formada por um único homem, que nunca recebeu dinheiro público, derrotou a Asahi Foods, empresa japonesa que patenteara o cupuaçu. E, entre histórias de desvios de verbas, revelou como parcerias acertadas reduziram a mortalidade infantil entre a população indígena, que voltou a crescer.
O problema não é o excesso de ONGs. Aquelas que dependem exclusivamente de recursos privados e não apresentam bons resultados têm morte natural. As distorções estão, invariavelmente, no conúbio entre organizações não-governamentais e o governo, quando não existe contrato de gestão e controle de resultados. Sem fiscalização e controle, fica fácil distribuir dinheiro público segundo critérios políticos, tornando nebulosa uma atividade que, por definição, deveria ser transparente.

OESP, 04/09/2004, Notas e Informações, p. A3

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