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ONG concentra 64% da saúde indígena em todo o Brasil

Valor Econômico, Especial, p. A14
03 de Jun de 2014

ONG concentra 64% da saúde indígena em todo o Brasil

Por César Felício
De Dourados (MS)

Em apenas quatro anos, a Missão Evangélica Caiuá, da Igreja Presbiteriana, com sede em Dourados (MS), tornou-se a maior ONG do Brasil no recebimento de recursos federais. Segundo dados disponíveis no portal da transparência do governo federal, a entidade recebeu R$ 36,6 milhões em 2010 do Ministério da Saúde para serviços de atenção à saúde indígena. Em 2013, a soma chegou a R$ 334,7 milhões. Para este ano, deve receber R$ 421,8 milhões, a serem pagos em três parcelas, segundo informação do ministério da Saúde. Entre as entidades sem fins lucrativos, é um volume superado apenas pelo Senai e pelo Senac, dois braços do Sistema S que não podem ser classificados como organização não governamental.
A Missão recebe recursos para atendimento em 19 dos 34 distritos sanitários administrados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). Paga um exército de 8,7 mil funcionários (5 mil agentes de saúde indígenas) em áreas tão díspares como o Mato Grosso do Sul, o território Ianomâmi e o sul do Brasil, que englobam 422 mil índios aldeados, ou 64% do total nacional de 657,8 mil índios vivendo em aldeias, conforme a Sesai.
O crescimento exponencial da ONG coincide com a criação da própria Sesai, que em 2011 substituiu a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) como órgão encarregado da saúde indígena. Desde então, o governo federal aumentou os recursos gastos com a saúde dos índios e centralizou os convênios em apenas três entidades beneficentes: além da Caiuá, a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM) responde por nove distritos e o Instituto de Medicina Integral Fernando Figueira (Imip), por seis. Juntas, as três instituições receberam R$ 574,1 milhões no ano passado. Antes da criação da Sesai, em 2010, a Caiuá atendia apenas 7 dos 34 distritos.
A expansão preocupa as igrejas mantenedoras da Missão. A entidade é administrada por três ramos da denominação presbiteriana: Presbiteriana do Brasil, Presbiteriana Independente e Presbiteriana Indígena. "A gente assume responsabilidades muito grandes e o nosso patrimônio tem um rendimento anual que custeia apenas um mês do programa. A relação com o governo é muito frágil. Se entrar uma nova administração todos os riscos são possíveis", conta o secretário-geral da Missão, reverendo Benjamin Bernardes, da Igreja Presbiteriana do Brasil, que prega em um dos sete templos da denominação em áreas indígenas do Mato Grosso do Sul, que concentra 71 mil índios aldeados.
A missão tem como patrimônio um hospital de 74 leitos na reserva indígena de Dourados, o "Porta da Esperança", que recebe R$ 3 milhões anuais em recursos do Sistema Único de Saúde (SUS); e uma fazenda de 360 hectares arrendada para sojicultores, que rende à Missão algo "entre R$ 15 milhões e R$ 20 milhões", diz Bernardes.
Os convênios são renovados a cada dois anos e irão expirar no dia 13 de fevereiro. Todos os funcionários são contratados pela CLT e demitidos no fim do convênio. Como houve sucessivas renovações, eles são recontratados para o período seguinte. Atrasos salariais são frequentes a cada começo do ano de convênio novo, quando o dinheiro do governo demora a entrar. De acordo com auditoria realizada pela Corregedoria Geral da União (CGU) no distrito sanitário de Minas Gerais e Espírito Santo, um dos administrados pela Caiuá, 23% do valor do convênio foi usado para o pagamento de rescisões entre 2011 e 2013. Hoje a Missão diz responder a 40 ações trabalhistas, que somam R$ 2 milhões.
Um outro relatório da CGU do ano passado, em que todo o setor é avaliado, descreveu que a alta exposição ao risco não é apenas da ONG, mas do poder público e, obviamente, dos próprios indígenas. Segundo o documento, apenas 15% dos funcionários que atuam no setor são servidores da Sesai, "o que aumenta consideravelmente o risco de descontinuidade ou inadequação dos serviços prestados". "Parcerias como essas são um castelo de cartas", definiu o coordenador de convênios da Missão Caiuá, o farmacêutico Demetrius Pareja.
A Missão Caiuá é antiga no ramo: foi criada por missionários americanos em 1928, sete anos antes da criação da cidade de Dourados. A reserva indígena de Dourados foi formada no começo do século passado, com o confinamento em uma única área de índios de três etnias de relação conflituosa entre si - caiuás, terenas e guaranis. A fonte de renda é o trabalho braçal para os usineiros de cana da região. "A falta de coesão social tem feito com que a reserva tenha se tornado um núcleo de violência, alcoolismo e pobreza ao longo desses anos", constatou o deputado Geraldo Rezende (PMDB-MS). Em 2007 a taxa de suicídios no Brasil foi de 4,7 por 100 mil habitantes. No Mato Grosso do Sul, o índice há seis anos era 8,1. No distrito sanitário indígena, 65,7.
Em 2005, houve um surto de desnutrição infantil indígena no país, com 21 mortes no Mato Grosso do Sul e 32 no Mato Grosso. A Missão Caiuá já administrava a prestação de serviços no distrito sanitário local. Fotos de crianças desnutridas em Dourados ganharam repercussão internacional. "Aquilo foi uma grande injustiça. Dourados concentrou óbitos porque era a única reserva que dispunha de um centro especializado de tratamento para desnutrição. Vinha gente de um entorno de 500 quilômetros para a cidade", diz o deputado estadual Laerte Tetila (PT), que era prefeito à época. O Centro de Desnutrição funciona em um antigo sanatório para tuberculosos, anexo ao hospital. Está atualmente com seis crianças internadas por desnutrição. Na crise de 2005, chegou a ter 36.
Benjamin Bernardes trabalha em uma saleta sem computador dentro do hospital da Missão. Pareja administra os convênios pelo Brasil em um sobrado encardido de barro, na saída de Dourados, área marcada pelo comércio de ambulantes. Bernardes nega categoricamente que o gigantismo da Missão seja fruto do planejamento. "Fomos quase obrigados a entrar na administração de outros distritos, por pressão do governo e dos próprios indígenas. São poucas as ONG que cumprem com os requisitos estabelecidos pela Sesai", disse o reverendo.
Segundo Pareja, não há previsão de taxa de administração nos convênios, e a ONG é obrigada a devolver os recursos federais recebidos quando não há realização da despesa. Fora do âmbito trabalhista, não há observações contra a entidade por parte de órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU) ou o Ministério Público. Mas a CGU fez ressalvas importantes ao auditar os convênios da entidade em 2013. Foi assinalado que a Sesai não havia estabelecido "rotinas e procedimentos normatizados a fim de confirmar a fidedignidade das informações disponibilizadas pela Missão Caiuá".
A conclusão foi de que existiam "falhas relativas à concessão, fiscalização, monitoramento e avaliação dos convênios celebrados com entidades beneficentes", que " impossibilitavam a avaliação de resultados". Depois do relatório, a Sesai baixou duas portarias sistematizando procedimentos para monitorar as ONGs.

Órgãos de controle combatem terceirização de serviços a índios

Por César Felício
De Dourados (MS)

O modelo de serviço terceirizado da saúde indígena é combatido por órgãos públicos de controle e pode gerar ao governo federal o pagamento de multa de R$ 326,9 milhões por não realizar concurso para a substituição dos 12,2 mil empregados das ONGs conveniadas, responsáveis por 80% da mão de obra que atua na área.
Tramita desde fevereiro na 18ª Vara do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) em Brasília pedido de execução judicial de um termo de ajustamento de conduta (TAC), assinado por seis procuradores do Trabalho, do Ministério Público da União e do Ministério Público Federal. A ação estabelece a multa e determina a contratação temporária imediata de todos os funcionários das entidades beneficentes.
Os procuradores alegam que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) terceiriza uma atividade fim e afirmam na petição que o governo, "com desfaçatez, confessa que não tem pretensão de realizar o concurso e quer elaborar um arranjo institucional jurídico, que, segundo informações extraoficiais, consistiria no repasse da prestação para uma organização social". "Eles haviam pedido em dezembro prorrogação dos prazos para cumprir o TAC. Marcamos uma reunião em fevereiro e então surgiu o comentário de que será proposta uma emenda constitucional para estabelecer a OS", comentou o procurador José Godoy, coordenador do Grupo de Trabalho Indígena do Ministério Público e um dos signatários do documento. O ministério da Saúde não comenta as especulações.
Segundo os órgãos de controle, as terceirizações na saúde indígena são pouco transparentes, já que dependem de auditorias permanentes para a medição dos serviços. Sua eficácia seria duvidosa, uma vez que o atendimento pode oscilar a cada renovação de convênio. E os valores envolvidos são expressivos: apenas para a Missão Caiuá está previsto o pagamento de R$ 421,8 milhões. "A concentração de convênios na Missão nos deixa perplexos", resumiu Godoy.
As três ONGs foram selecionadas em um "chamamento público" realizado em agosto de 2011. O procedimento é uma modalidade específica para parcerias, prevista na lei de licitações. Inicialmente a Missão Caiuá ficou com o fornecimento de mão de obra para 17 dos 34 distritos sanitários. A Sociedade Paulista de Desenvolvimento da Medicina (SPDM) assumiu 14 distritos e o Instituto de Medicina Integral de Pernambuco (Imip), três distritos.
Em 2013, ao renovar os convênios, a Missão Caiuá aumentou a concentração, passando para 19 distritos. O Imip passou de 3 para 6 áreas e a SPDM reduziu sua participação de 14 para 9 territórios. Desde 2004 as ONGs que atuam na saúde indígena são responsáveis apenas pela mão de obra. A compra de suprimentos e a contratação de transporte é feita diretamente pelo governo.
Os chamamentos públicos aconteceram quando o governo já estava sendo pressionado pelos órgãos de controle para assumir a administração direta do serviço e fazer concurso público. O TAC foi assinado em 2007 pela Funasa, à época responsável pela saúde indígena, já que a Sesai só seria criada em 2011. O acordo previa sucessivos concursos para substituir as ONGs, recebeu dois aditivos e expiraria em 2015. Os concursos não foram realizados.
Procurado pelo Valor, o Ministério da Saúde não atendeu aos pedidos de entrevista e se manifestou por nota. Segundo a pasta, as três ONGs escolhidas "atendem aos critérios técnicos definidos no chamamento público: experiência devidamente comprovada de serviços ou ações de saúde indígena, de saúde pública nos diversos níveis do Sistema Único de Saúde, quadro gerencial com qualificação compatível com o objeto do convênio, composto no mínimo por um profissional de nível superior habilitado para cada função de administração, contabilidade e coordenação técnica".
"A contratação por meio de chamamento público tem se mostrado a forma mais eficaz até que seja realizado concurso, tendo em vista as especificidades dos povos indígenas", segue a nota. No relatório de gestão de 2013 da Sesai, disponível na internet, entretanto, o órgão foi mais incisivo: relatou que o ministério do Planejamento negou por duas vezes no ano passado a autorização para concurso.

Setor teve duas guinadas ao longo de dez anos

Por César Felício
De Dourados (MS)

Duas guinadas na saúde indígena no Brasil coincidem com a passagem do petista Alexandre Padilha - candidato do partido ao governo de São Paulo - pelo ministério da Saúde. Nas duas ocasiões, houve mudança de rotinas administrativas e repiques nas taxas de mortalidade infantil indígena. Na primeira delas, entre 2004 e 2005, Padilha era o diretor de saúde indígena da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) quando a instituição, escorada em um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU), retirou das ONGs a faculdade de realizar compras de suprimentos e contratação de transporte. À época, havia 53 ONGs atuando no setor e 45 aceitaram continuar na área sob as novas regras.
A taxa de mortalidade infantil indígena vinha em declínio, passando de 74,6 óbitos por 1.000 nascidos vivos em 2000 para 47,4 em 2004, mas o ambiente era caótico. Conforme apurou uma Comissão Externa da Câmara dos Deputados em 2005, 24 das 53 ONGs tinham pendências na Receita Federal. A mudança fez com que a União freasse os repasses para os convênios e a taxa de mortalidade infantil cresceu em 2005, atingindo 52,6, de acordo com a Funasa. Voltou a cair em 2006, para 48,6.
A segunda guinada aconteceu em 2011, quando Padilha se tornou ministro da Saúde da presidente Dilma Rousseff. A Funasa deixou de ser responsável pelo setor e foi implantada a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), criada por lei no ano anterior. A mortalidade infantil teria voltado a subir no ano da transição, entre 2010 e 2011, passando de 39,6 para 41,8 mortes por 1.000 nascidos vivos, segundo dados provisórios da Sesai divulgados em 2012 em audiência pública na Câmara dos Deputados. No ano seguinte, se reduziu para 37,7, de acordo com o órgão. O ministério não informa o dado nacional de mortalidade infantil indígena do ano passado.
Até 1999, com a votação da "Lei Arouca", a saúde indígena era de responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai). Com a lei, o tema passou para a Funasa, que assumiu a gerência de um subsistema do Sistema Único de Saúde (SUS), o Sasi-SUS. Houve a divisão do país em 34 distritos sanitários e a liberação de recursos às ONGs para a prestação de serviços foi quase imediata. Desde sua criação, a Sesai é chefiada pelo médico-sanitarista Antonio Alves de Souza. Servidor do ministério do Trabalho desde 1977, Alves foi assessor direto do ministro da Saúde nas gestões de Humberto Costa, Saraiva Felipe e José Gomes Temporão, durante o governo Lula.

Valor Econômico, 03/06/2014, Especial, p. A14

http://www.valor.com.br/brasil/3572084/ong-concentra-64-da-saude-indige…

http://www.valor.com.br/brasil/3572086/orgaos-de-controle-combatem-terc…

http://www.valor.com.br/brasil/3572088/setor-teve-duas-guinadas-ao-long…

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