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Onda de calor descortina a História

O Globo, Sociedade, p. 26
29 de Ago de 2018

Onda de calor descortina a História

SÉRGIO MATSUURA

A pior seca em décadas gerou milhões em prejuízos para o setor agrícola, impactou o preço dos alimentos, afetou o bem estar da população, mas foi uma dádiva para a arqueologia em alguns países europeus. Na Irlanda, por exemplo, as chuvas em maio, junho e julho ficaram bem abaixo das expectativas, provocando o racionamento de água na capital, Dublin. Enquanto isso, uma versão irlandesa do Stonehenge foi descoberta no Conjunto Arqueológico do Vale do Boyne. Por toda a Europa, são centenas, senão milhares de novos sítios encontrados graças ao longo e raro período de estiagem.

- As plantações e os campos gramados se transformaram em mapas do passado, pintados com o verde e o amarelo das plantas - ilustra a arqueóloga e apresentadora de TV Carenza Lewis, da Universidade de Lincoln.
Por causa do longo período sem chuvas, as plantas entram em estresse hídrico, com o amarelamento das folhas. Mas diferenças na profundidade do solo fazem com que o estresse aconteça em tempos diferentes. Áreas mais profundas retêm mais umidade, que mantém as plantas verdes por mais tempo. Por outro lado, áreas mais rasas perdem água mais rápido, amarelando as folhas mais cedo. E o uso do solo no passado é um dos fatores que alteraram a estrutura do subsolo.

- Se alguém cavou uma vala há dois mil anos, ela pode continuar lá escondida sob camadas de solo, acumulando mais água. Então, as plantas que crescem nela continuam verdes por mais tempo - explica Dave Cowley, da agência governamental Historic Environment Scotland, responsável pela preservação do patrimônio histórico da Escócia. - Do chão, essas diferenças são imperceptíveis, mas elas ficam claras em fotografias aéreas.

Para detectar essas estruturas escondidas, Cowley aproveitou o auge da seca na Escócia - nas últimas três semanas de julho - para uma sequência de missões aéreas para a coleta de imagens. A bordo de um pequeno avião, o arqueólogo registrou em vídeo e fotografias as plantações devastadas pela seca, em busca de sinais de ocupação humana no passado. Cada voo durava entre quatro e cinco horas. Foram centenas de estruturas registradas, mas a análise deve demorar meses.

Cowley acredita que cada descoberta, por menor que seja, ajuda a contar o passado da ocupação humana na Escócia, mas destaca como o achado mais importante até agora um acampamento de legionários romanos, datado provavelmente entre os séculos I e II, durante a invasão britânica. Ressalta, entretanto, que a análise de todo o material coletado ainda vai demorar meses.

- Para destacar um exemplo, cito os restos de um acampamento temporário usado pelos legionários romanos - aponta Cowley. - Ele vai nos trazer informações importantes sobre o que os romanos estavam fazendo, onde eles estavam explorando na tentativa de conquistar a Escócia há quase dois mil anos.

NÃO ACONTECIA DESDE 1976

As marcas deixadas por um assentamento pré-histórico perto da pequena vila de Eynsham, a noroeste de Londres, também foram reveladas pela seca, mostrando aos arqueólogos o contorno de estradas, vestígios de residências e montes funerários. Os pesquisadores pediram que donos de drones fizessem o máximo de registros aéreos em áreas descampadas, pois com a chegada das chuvas o verde retorna rapidamente.

A última vez que fenômeno semelhante aconteceu foi no verão de 1976, considerado o pior período de seca no Reino Unido desde o início das medições, no século XVIII. A ocasião também foi frutífera para a arqueologia, mas na época o reconhecimento aéreo era caro e restrito.

- Em 1976 as pessoas precisavam de um avião para fazer fotografias aéreas. Hoje, existem milhões de drones no Reino Unido - compara Carenza. - Por isso nós sabemos que serão milhares de novas descobertas. Já contamos centenas de publicações em redes sociais.

Uma das descobertas feitas com o uso de drone revelou um monumento circular erguido há 5 mil anos no Conjunto Arqueológico do Vale do Boyne, parecido com o Stonehenge. Mas em vez de pedra, é provável que a estrutura com 150 metros de diâmetro tenha tido marcações com toras de madeira. Com o passar do tempo, a madeira apodreceu, mas as covas de fixação deixaram marcas no solo que só foram vistas agora, por causa da seca.

Em relato publicado em seu site, o jornalista Anthony Murphy, autor da descoberta, contou ter aproveitado o período de estiagem para procurar por novas estruturas no sítio arqueológico. No dia anterior ao achado, ele havia voado com o drone para tirar fotos aéreas de uma escavação em curso e publicou o material no Facebook. Então, um amigo arqueólogo o aconselhou a fazer novos voos sobre plantações próximas, porque marcas normalmente invisíveis poderiam aparecer.

- Quando eu vi as estruturas circulares, eu sabia que se tratava de algo importante. Eu sabia que não era uma brincadeira, mas um monumento - relembrou Anthony, que estava acompanhado de um amigo no momento da descoberta. - Nós dois somos familiarizados com o parque, sabemos onde estão todas as estruturas do sítio arqueológico e não havia nenhum monumento conhecido naquele ponto.

Mas nem todas as marcas deixadas pelos antepassados são tão óbvias como um monumento circular. Na maioria dos casos, somente o olhar atento de um especialista é capaz de distinguir um monte funerário de uma elevação natural do terreno, por exemplo.

- Qualquer pessoa pode voar com um drone e tirar fotos, mas é preciso conhecimento arqueológico para distinguir o que foi feito por humanos da geologia natural - afirmou Carenza, explicando que a identificação é feita com base em dados sobre outros sítios arqueológicos na região e na análise da morfologia básica das marcas - dimensões e formatos geométricos. - Tirar a fotografia é apenas o primeiro passo.

O Globo, 29/08/2018, Sociedade, p. 26

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