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Oficina Culinária dos Guarani

Come-se blog spot
Autor: Neide Rigo
26 de Fev de 2008

Neste último fim de semana, meus dias foram úteis. Fui visitar aldeia M´Bya Guarani, Rio Silveira. É onde está a Fortaleza do Palmito Juçara do Slow Food, em Boracéia, litoral norte de São Paulo. Com apenas alguns convidados juruá (nós, brancos invasores), aconteceu a Oficina de Culinária Guarani, que começou no sábado e se estendeu até segunda-feira, quando finalmente fez sol, teve pesca e fogo para assar o peixe. No sábado e no domingo foi uma aguaceira só. Mesmo assim, pude acompanhar o preparo de alguns pratos. O objetivo do evento, que reuniu representantes de outras aldeias (do Rio de Janeiro, do litoral Sul paulista, Vale do Ribeira e até desta capital de São Paulo - sim, temos aldeia guarani no bairro de Parelheiros e Jaraguá), foi resgatar preparos tradicionais, que vêm se perdendo com a ampla oferta de produtos industrializados e pobres nutricionalmente. Com isto, nós, juruá, também deveríamos nos preocupar (com as nossas tradições, com os nossos juruazinhos...)

Seguem aqui umas pinceladas do que pude observar

AVAXI (ou milho), junto com a JETY (batata-doce), JEJY (palmito), MANJI´O ou mandi'o (mandioca) e MANDUVI (amendoim) constituem alguns dos principais alimentos guaranis. Cozido ou assado, o milho é comido sem sal e as crianças fazem fila comportada para ganhar o seu. Por ele, até jogam fora aqueles detestáveis isoporzinhos de milho ultra-salgados, ultra-gordurosos e ultra-aromatizadosartificialmente. Sim, estas pestes urbanas também chegam lá.

O milho ralado vira este bolo (MBYTA) cozido por baixo e por cima, forrado com folhas de caeté (caetê ou caité), conhecida entre os guarani por PEGUAO. Forra-se uma forma com as folhas, cobre com milho ralado, puro e tão somente milho ralado, e cobre-se tudo com mais folhas. Tudo bem fechadinho para não cair cinza na massa. Acende-se fogo em cima e em baixo e espera até a massa endurecer. Lembra uma pamonha assada, sem sal. Mas a brasa confere um saborzinho especial.

A massa de milho é despejada nos pacotinhos de folhas de caeté (PEGUAO), amarradas com palha de milho. Pamonhinhas ancestrais, também chamadas de MBYTA. Agora descobri a origem das pamonhas na folha de caeté do Vale do Paraíba (aliás, pamonha vem do T
upi pa'muña, ou pegajoso).

O palmito ou JEJY não é alimento do dia-a-dia, mas em ocasiões de festa ele está sempre presente. Comem cozido ou cru com mel de jataí. Experimentei cru, sem mel, maravilhoso. Mas com mel, é claro, fica melhor ainda, acreditem. E a larva que dá no tronco derrubado, chamada IXO (se diz itchó), dizem ser deliciosa - infelizmente não havia desta vez e não pude provar. Ela é gordurosa e tem sabor de coco.

Olhando assim, ninguém dá nada por esta sopa. Mas fui obrigada a repetir, comidinha de alma, surpreendente. É assim: cozinha na água e sal uns pedaços de frango. Sem tempero algum e sem refogar. Quando os pedaços estão quase macios, junta um tantão de palmito juçara cru picado. Deixa cozinhar até ficar tudo molinho. Foi a melhor coisa que experimentei lá. Deliciosa. O carvão próximo dá ao caldo um sabor sensacional de defumado. E olhe que o frango usado era daqueles brancos de granja, comprados para a ocasião. Fiquei imaginando então esta sopa feita com frango caipira. Segundo Jera (diz-se Djirá), uma índia da aldeia Tenonde Porá, de Parelheiros, esta sopa pode ser feita com outros ingredientes, mas sempre dois - carne e mandioca, por exemplo.

Diferente de outros povos, os Guarani, pelo menos os que se reuniam lá, não usam a farinha de mandioca, mas apenas a raiz cozida (MANJI´O), que comem sem sal. Aliás, tudo sem sal, embora o Sal Cisne estivesse lá para temperar algumas coisas como a sopa ou o xipa (se diz tipá).

Meninas-moças fazem a massa com farinha de trigo, sal e água, boleiam, achatam e fritam no óleo. Segundo apurei, antes eram feitos de farinha de milho e eram fritos na gordura do YXO (a larva do tronco de palmeiras).

Faz-se assim o KAGUIDY, a bebida levemente fermentada de sabor adocicado e consistência de mingau: com o milho ralado são feitas umas bolas que são cozidas em água. Estas bolas são mastigadas pelas índias mocinhas – de preferência que comeram previamente muito YXO, a tal larva de tronco de palmeira, para a bebida ficar mais docinha. A massa de milho mastigada é devolvidas à panela ou cuia com a água de cozimento, onde fermentam até o dia seguinte, quando a bebida já pode ser tomada. Se eu gostei? Não é ruim, não, mas acho que tem que fazer mesmo parte da identidade cultural. Os Guarani gostam e é isto que importa (imagino que a ptialina da saliva seja essencial para transformar o amido do milho em açúcar e deixar a bebida adocicada).

O PETYGWA, o cachimbo guarani, é usado para se fumar tabaco preto, plantado por eles ou comprado em rolo, e está relacionado intimamente às práticas religiosas e espirituais - para atingir um estado meditativo e de concentração, por exemplo. Aliás, os Guarani são extremamente espiritualizados e a prática de sua religião, com cantos e rezas, na OPY, a casa de rezas, é uma das formas de manter o grupo unido numa tradição que pouco se alterou com o tempo, à despeito do contato com os juruá.

Sabem aquelas crianças que fazem birra, berram, correm, tropeçam na sua canela, gritam porque querem, esperneiam porque não querem, tomam o brinquedo do amiguinho, dizem a todo momento é meu, eu quero, não vou, não dou? E aquelas mães estressadas gritando com os filhos, tentando dominar os tiraninhos? Estas situações entre os Guarani não existem. Eles falam baixo, não gritam com as crianças (não ouvi um só grito de adulto ou criança e ninguém fica tagarelando um com o outro a todo momento - adultos passam horas sentados um do lado do outro sem conversar). As crianças são tranqüilas, meigas, alegres, resolvidas, generosas (em vários momentos vi crianças dando um pedaço do que estava comendo para outra que nem pediu nada). Todos os adultos cuidam das crianças que parecem não ter um pai ou uma mãe - mas, vários ao mesmo tempo. Tive a impressão de que saem do peito para o páteo: caem, se levantam, brincam e comem com a maior autonomia e respeito pelos adultos. São as crianças mais educadas que já vi até hoje.

A música tem presença forte entre os Guarani. O canto é presente de Nhanderu (o Deus maior) e pode ser recebido pelas crianças, espíritos puros e sem maldade. Eles são enviados também por revelações a qualquer índio. Mas, em todos os casos, o canto pertence à aldeia e não à pessoa que o recebeu. Às vezes, no páteo, ouve-se um coral de 50 vozes e você acha que pode haver por ali um aparelho de som potente. Quando vai conferir, são 3 ou 4 meninas cantando em coro e fazendo passinhos, com acompanhamento de corda e percussão. É de chorar.

O coro desta aldeia talvez vá para o próximo Terra Madre, na Itália. Se quiser conhecer a música celestial destes Guarani, compre o cd aqui. É o que toca agora enquanto escrevo. Para saber mais sobre os Guarani Mbya, veja este site.

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