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Obra radiografia mancha social do trabalho escravo

OESP, Caderno 2, p.D7
26 de Set de 2004

Obra radiografa mancha social do trabalho escravo
'Pisando Fora da Própria Sombra' retrata terror e perda nas fazendas do Pará
Jotabê Medeiros
Trabalho forçado. Servidão involuntária. Cativeiro.
Superexploração. Cárcere privado. Quase escravo. Semi-escravo. Escravidão branca. Subumano. Regime Forçado. Trabalho degradante. Escravidão da miséria.
Entre 1972 e 2002, a imprensa brasileira usou 25 maneiras diferentes de se referir ao que hoje é definido pelo Estado brasileiro como "trabalho escravo", termo empregado em 1995 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso numa entrevista radiofônica. Fernando Henrique, na ocasião, ainda fez uma distinção: o que difere a forma atual de escravidão daquela do século 19 é que o escravo do passado sabia quem era seu senhor e o atual não sabe.
Aquilo que o padre Antônio Vieira demonstrava ser uma "perversão da igualdade da natureza", a categorização do ser humano em senhor e escravo, é o tema de um grande estudo hoje publicado pela editora Civilização Brasileira, Pisando Fora da Própria Sombra - A Escravidão por Dívida no Brasil Contemporâneo, de Ricardo Rezende Figueira.
Figueira, que é padre, trabalhou durante 20 anos na Diocese de Conceição do Araguaia. Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicara anteriormente pela editora Vozes o livro A Justiça do Lobo: Posseiros e Padres no Araguaia e Rio Maria: Canto da Terra.
No Pará, entre 1969 e 2004, foram identificadas 445 fazendas que utilizaram o recurso do trabalho escravo. Essas fazendas são identificadas em gráfico no trabalho do padre Figueira, que se vale também de um apurado trabalho de medir as diferentes motivações - tanto de peões quanto "gatos" (os aliciadores da mão-de-obra) na aplicação desse sistema.
Entre os peões, apesar de considerar que o fim das coisas é sempre o mesmo, sempre a barbaridade da exploração, o padre Figueira também registra a contradição. "Alguns resistiam, outros aderiam por medo, por dúvida, por senso de oportunidade ou conversão à lógica daquele sistema de trabalho, considerando-o justo."
O mecanismo de ascensão, assinala o autor, é encontrável nos mecanismos de "atravessamento" da atividade, e os gatos (empreiteiros contratados pelos fazendeiros, em geral homens armados e violentos) podem ser subdivididos em diversas categorias, como o reta-gato e o gatinho. O poder dos empreiteiros pode ser ampliado. Alguns adquirem terras e se tornam médios proprietários, comerciantes, donos de garimpos e entram na vida política.
A maior parte desses "gatos" e empreiteiros passou e ainda passa incólume pelo cerco da Justiça, pelas condições geográficas e políticas das regiões onde atuam, ou pela própria conivência das autoridades.
Figueira conta o caso de um "gato" célebre, Abilão, que, quando interrogado por um delegado, em 18 de julho de 1983, a respeito da escravidão praticada na fazenda Vale do Rio Cristalino, revelou que exercia a atividade havia mais de 8 anos.
"De compleição forte, bigode farto, camisa com listras coloridas em desenhos quadrangulares, grossa corrente de ouro onde tinha dependurado o crucifixo, ao se encontrar com uma equipe de parlamentares que investigava a fazenda Vale do Rio Cristalino, no mesmo ano, disse que tinha ali 408 peões e, destes, haviam fugido 16; que, de 184 trabalhadores que levou para uma empresa de Maceió, escaparam 25. Naquele momento, mostrou por iniciativa própria, capturado e amarrado, o amedrontado Antonio Andrade dos Reis, de 37 anos, com aparência de 50. Não era a primeira denúncia contra ele, nem a última. Entre 1981 e 1994, diversos trabalhadores fugiram de 11 fazendas onde ele era empreiteiro e o denunciaram. Em 1995, havia mais de 20 anos que se mantinha no mesmo ofício."
Raimundo Filho, peão de Barras que se submeteu ao gato Zé Nilo na Fazenda Primavera, contou sua história com a serenidade que um executivo narra o seu dia numa instituição financeira da Avenida Paulista, sem picos dramáticos.
Trabalhou meses "esforçadamente", de cedo até ficar escuro, e a paga vinha em forma de farinha, bota, instrumentos para mais trabalho, fósforo, foice.
Dava graças a Deus, no entanto, de o seu gato não ser "carrancista" (bravo, inflexível) e de ter saído vivo.
Terminada a empreita, Raimundo saiu só com o dinheiro da passagem. Um único trabalhador, que comprou cigarro, não pôde sair. Ele ficou e, "dessa ficância, ele até hoje nunca chegou, nunca apareceu, nem os pais sabem se é vivo ou não". Para Raimundo Filho, o companheiro havia errado ao "manter o vício do cigarro e não ter aberto mão do sabonete".
A condição social de quase invisibilidade ajuda a acobertar o crime do trabalho escravo em algumas regiões do País. José Pereira, que presenciou o assassinato de um amigo, ao depor sobre o fato, só sabia que o morto era conhecido como Paraná e tinha pouco mais de 20 anos. A companheira de Francisco de Assis, morto em Conceição do Araguaia, não sabia seu nome completo nem o endereço de seus familiares.
Não há maniqueísmo no relato de Ricardo Figueira. Todos são ouvidos, todos têm versões registradas, as contradições são emparelhadas, a situação das minorias presentes no teatro da escravidão por dívida são analisadas: o gay, a mulher que cozinhava para 42 homens, a criança que trabalhava como homem adulto.

OESP, 26/09/2004, p. D7

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