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O último guardião dos Umutinas

Diário de Cuiabá-Cuiabá-MT
Autor: RODRIGO VARGAS
22 de Abr de 2003

O índio Julá Paré, cuja idade é calculada entre 75 e 105 anos, mantém sozinho o idioma de seu povo

O índio Umutina Julá Paré, que vive no Posto Indígena Umutina, a 12 quilômetros do centro de Barra do Bugres

Haipukú vivia só. Apesar do mundo belo e inexplorado que tinha à sua frente, não havia outras pessoas com quem pudesse conversar e compartilhar aquela experiência, o que o deixava muito triste e entediado.

Um dia, caminhando sem rumo por uma estrada, colheu flores que nasciam à sua margem, as dispôs ordenadamente no chão e, sem nada melhor em mente, seguiu estrada adiante.

De súbito, percebeu atrás de si algo semelhante a uma animada conversa. Voltou-se e viu com espanto que, no exato lugar onde deixara as flores, haviam surgido várias pessoas, que acolheu com alegria e levou para morar em sua casa.

No dia seguinte, tentou o mesmo com frutas de figueira e caju do mato e, para sua surpresa, mais e mais pessoas foram surgindo para povoar toda a região.

Tal como no mito de origem de seu povo, é também sozinho que o índio Umutina Julá Paré, de idade avançada e não determinada, vê passar os dias no Posto Indígena Umutina, a 12 quilômetros do centro de Barra do Bugres (169 quilômetros de Cuiabá).

Sobrevivente de um brutal processo de contato, que entre as décadas de 1910 e 1940 anos reduziu a população umutina para pouco mais de 20 indivíduos, ele é hoje o último falante do idioma e o guardião solitário de tradições, danças e cânticos que um dia compuseram a alma de seu povo.

Na semana que antecedeu ao dia do Índio, a reportagem do Diário esteve com Julá Paré em sua pequena casa de palha. Lúcido e incrivelmente bem disposto (as estimativas de sua idade variam entre 75 e 105 anos), ele lamentou que os mais jovens da aldeia só queiram saber "da língua do branco".

"Se eu pudesse, faria", disse o índio, ao ser perguntado se gostaria de, a exemplo do lendário Haipukú, fazer reviver e despertar do esquecimento os umutina, após 92 anos da primeira tentativa de contato. "Eu tenho saudade", justificou.

No Posto Indígena Umutina vivem hoje 350 habitantes, entre umutinas e índios de outras sete etnias (Bakairi, Kaiabi, Paresi, Irantxe, Nambikwára, Terena e Bororo), em grande miscigenação. Tanto que, entre os "legítimos", como são chamados, figuram apenas duas famílias - além de Julá Paré, que não teve esposa ou filhos.

À época do primeiro contato, essa mesma população era estimada em 400 indivíduos, espalhados em várias aldeias na região. Mas os brancos vieram com suas doenças, dentre as quais três (coqueluche, sarampo e tuberculose) se tornaram epidemias mortíferas na etnia.

"Naquele tempo não tinha enfermeiro nem nada", lembra o remanescente, que era ainda um garoto quando perdeu, quase ao mesmo tempo, pai, mãe, irmãos e amigos. "Quando fui para o posto indígena, lá na aldeia não tinha mais ninguém".

O posto foi inaugurado em 1944 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), e tinha por finalidade primeira abrigar os muitos órfãos das epidemias. Por este motivo, foi chamado pelos criadores de "Fraternidade Indígena".

Pouco tempo depois de chegar ao local, Julá Paré decidiu que iria embora. "Papai e mamãe morreram e eu resolvi sair pelo mundo. Fui meio sem rumo e acabei no garimpo. Fiquei uns 20 anos trabalhando. Foi quando num dia eu não quis mais ficar na terra dos outros. Pensei assim: se o povo deixar, eu volto".

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