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O tiro sai pela culatra

FSP, Tendências/Debates, p. A3
Autor: LEWINSOHN, Thomas; METZGER, Jean Paul; JOLY, Carlos; RODRIGUES, Ricardo
05 de Jun de 2010

O tiro sai pela culatra
O Código Florestal Brasileiro deve ser modificado?
Não

Thomas Lewinsohn, Jean Paul Metzger, Carlos Joly e Ricardo Rodrigues

A pressão para atualizar o Código Florestal Brasileiro (CFB) aflorou nos últimos dois anos, fomentada especialmente por parlamentares ligados ao agronegócio. Tal como outros intentos governamentais que atritam com a área ambiental, imprime-se a esse projeto caráter de necessidade quase emergencial.

A pretendida reforma deveria remover o estrangulamento para a expansão de terras agrícolas, hoje supostamente bloqueada pela combinação de áreas de preservação permanente (APP) e reservas legais (RL). Só que esse bloqueio não existe.

A suposta escassez de terras agricultáveis não resiste a estudo mais criterioso, como o recentemente coordenado pelo professor Gerd Sparovek, da Escola Superior de Agricultura da USP (Esalq).

Realocando para cultivo agrícola terras com melhor aptidão, hoje ocupadas com pecuária de baixa produtividade, e aumentando a eficiência da pecuária nas demais, por meio de técnicas já bem conhecidas, a área cultivada no Brasil poderá ser quase dobrada, sem avançar um hectare sequer sobre a vegetação natural.

A reforma também pretende retirar da ilegalidade muitas propriedades que não mantêm as APP e RL estipuladas. Para isso, pensa-se em fundir as APP com as RL e flexibilizar o uso destas últimas.

No entanto, as APP e as RL são áreas que exercem papel complementar na conservação das paisagens rurais e não deveriam ser tratadas como equivalentes. Ademais, o uso de RL com espécies exóticas representa uma completa descaracterização dessas áreas.

Sob a desculpa de proteger as pequenas propriedades, as APP e RL serão colapsadas, reduzidas e drasticamente transformadas, levando a amplos desmatamentos e perda de áreas protegidas, que não se destinam apenas a conservar espécies e a promover o uso sustentável de recursos naturais.

Elas asseguram uma gama de serviços ambientais indispensáveis à qualidade de vida humana e à própria qualidade e produtividade agrícola. Da proteção dessas áreas dependem a regulação de cursos de água, o controle da erosão, a polinização de diversas plantas cultivadas, o controle de pragas, o sequestro do carbono atmosférico e muitos serviços mais.

Qual a participação da comunidade científica competente na formulação dessas alterações? Quase nula. Há muitos grupos científicos pesquisando ativamente a conservação e restauração da biodiversidade e o desenvolvimento de metodologias que permitam a produção agrícola com a efetiva preservação do ambiente.

Nem os pesquisadores mais reconhecidos dessas áreas nem as sociedades científicas relevantes foram ouvidos. Os parlamentares decidiram quem são os cientistas que merecem atenção e desqualificaram ou ignoraram todos os demais.

Passado quase meio século de intensas transformações, é necessário atualizar o CFB, facilitar a produção agrícola em pequenas propriedades, mas sem deixar de fortalecê-lo nos objetivos essenciais.

Se esses objetivos forem soterrados, haverá sérias consequências para o próprio agronegócio, porque não apenas se comprometerá os serviços ambientais, mas o mero cumprimento formal de legislação ambiental inócua não irá assegurar certificação ambiental respeitada.

E quem duvida de que tal certificação será cada vez mais exigida para comercializar qualquer commodity brasileira?

É hora de os agroparlamentares e demais envolvidos compreenderem que as demandas ambientais representam componentes indispensáveis da boa agricultura, bem como da melhor qualidade de vida.

Thomas Lewinsohn é professor titular da Unicamp e presidente da Associação Brasileira de Ciência Ecológica e Conservação.
Jean Paul Metzger é professor da USP, onde coordena o Laboratório de Ecologia de Paisagens.
Carlos Joly é professor titular da Unicamp e coordenador do Programa Biota-Fapesp.
Ricardo Rodrigues é professor titular da Esalq-USP, onde coordena o Laboratório de Restauração.

FSP, 05/06/2010, Tendências/Debates, p. A3

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0506201007.htm

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