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O 'sonho errado' ou a batalha errada?

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: GOLDEMBERG, José
25 de Nov de 2003

O 'sonho errado' ou a batalha errada?

José Goldemberg

Omovimento ambientalista teve origens aristocráticas, no final do século 19, com os apreciadores dos pássaros e da natureza, luxo a que só os ricos se podiam dedicar. Ele só ganhou um significado mais profundo e prático a partir de meados do século 20, quando graves "episódios" de poluição começaram a provocar desastres e calamidades públicas. A Lei do Ar Puro, da Inglaterra, aprovada em 1956, teve origem num "episódio", em 1952, em que um nevoeiro particularmente intenso em Londres foi responsável, em poucas semanas, pela morte de 4 mil pessoas e por mais de 20 mil doentes. A lei estabeleceu limites entre a emissão de poluentes e os níveis aceitáveis da qualidade do ar.
Seguiram-se leis do mesmo tipo em outros países e a partir da Conferência de Estocolmo de 1972 ocorreu um grande reforço dos movimentos dos ambientalistas com a criação de Ministérios do Meio Ambiente, inclusive nos países em desenvolvimento, como o Brasil.
A missão desses ministérios era a de estabelecer um equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a produção de poluentes que comprometeriam esse desenvolvimento. Isso envolve considerações técnicas e econômicas, e não apenas aspirações genéricas. A construção de cidades e estradas, a agricultura moderna, a produção de energia e todo tipo de atividade industrial essencial para o progresso alteram o ambiente natural em que vivemos e o problema é estabelecer limites do que é aceitável.
A Constituição brasileira de 1998 captou essas idéias no seu artigo 225, ao dizer que cabe ao poder público "exigir, na forma de lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade".
O poder público se exerce por meio de muitos instrumentos, os mais importantes dos quais são as resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) que exigem estudos de impacto ambiental (EIA) e relatório de impacto ambiental (Rima). Esses relatórios são apreciados pelo Ibama ou pelas Secretarias Estaduais de Meio Ambiente e nelas são dados aos técnicos poderes extraordinários, como o de julgar a propriedade ou impropriedade de "alternativas mais favoráveis" que devem fazer parte do Rima.
Esse parece ser o problema crucial da aplicação da legislação ambiental e do que dispõe a Constituição federal.
Governos democráticos, eleitos pela maioria da população, têm suas prioridades e formulam planos de desenvolvimento econômico e social, como a construção de habitações populares, infra-estrutura em geral, e encorajam atividades agrícolas e industriais. Algumas delas podem ser "potencialmente causadoras de degradação do meio ambiente", apesar de serem destinadas a resolver problemas sociais da população.
A visão dos governantes pode ser uma e a dos técnicos da área do meio ambiente ser outra. Esses técnicos são, em geral, submetidos a fortes pressões de ambientalistas e do Ministério Público, que muitas vezes não dispõem do apoio técnico necessário que os órgãos de governo têm, mas são freqüentemente desqualificados como pouco confiáveis. Outras vezes não existem alternativas e a decisão sobre qual é a mais favorável é controvertida.
Mais freqüentemente, porém, o problema é econômico e certas alternativas podem ser inviáveis sob este ponto de vista. Os governantes - de prefeitos a governadores, ministros e ao próprio presidente da República - se movimentam num mundo onde os recursos são escassos, e escolher corretamente as prioridades faz a diferença entre o sucesso e o fracasso. Já alguns ambientalistas e, às vezes, os promotores do Ministério Público se guiam por considerações mais distantes da realidade, que podem até ser corretas, mas impraticáveis.
O governo federal, no momento, enfrenta esses conflitos e o desabafo do deputado Fernando Gabeira - "sonhei o sonho errado" - é apenas uma manifestação deles e provavelmente não a pior. Um problema envolvido é a liberação do uso de transgênicos sem estudos de impacto ambiental. Esta pode parecer uma decisão errada, mas exigir esses estudos é também problemático, e mais parece um método de procrastinar qualquer decisão sobre o assunto do que resolvê-lo. A única medida razoável, no momento, é exigir que eles sejam rotulados. Já no caso da usina nuclear Angra 3, levantado também pelo deputado Gabeira, as decisões podem ser mais fáceis, já que o empreendimento não parece ter benefícios econômicos.
Uma solução para esses problemas foi enunciada pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, ao tomar posse, reivindicando a "transversalidade" da ação da área de meio ambiente dentro do governo. Obviamente, sua reivindicação não foi atendida e ficou no plano da retórica, considerando os problemas que enfrenta atualmente.
Já o governo estadual de São Paulo, que enfrenta problemas como o Rodoanel, a flotação no Rio Pinheiros, o problema das áreas contaminadas, a disposição de resíduos sólidos, o licenciamento de usinas térmicas e o zoneamento territorial, tem feito uso da "transversalidade" na prática.
Este parece ser o caminho para resolver problemas que de outras formas seriam insolúveis. A nosso ver, Gabeira não "sonhou o sonho errado", mas travou a batalha errada.

José Goldemberg é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo

OESP, 25/11/2003, Espaço Aberto, p. A2

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