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O Sivam, que entra em atividade em julho, é um programa militar e geopolítico em pleno regime civil

Estado de S.Paulo
Autor: Lúcio Flávio Pinto
02 de Abr de 2002

No dia 25 de julho, entrará em atividade, em Manaus, o primeiro Centro Regional de Vigilância do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), um investimento equivalente a 1,4 bilhão de dólares (ou mais de 3,2 bilhões de reais). A data não é casual. O contrato entre o governo brasileiro e a empresa norte-americana Raytheon foi assinado exatamente em 25 de julho de 1997, com previsão de execução em cinco anos. Os responsáveis pela empreitada querem mandar um recado: o Sivam é tão sério que cumpre rigorosamente seus prazos, algo raro no Brasil.
Só no segundo semestre do próximo ano, porém, a cobertura eletrônica dos 5,5 milhões de quilômetros da Amazônia estará concluída. Além de abranger equipamentos fixos de sensoreamento remoto, ela mobilizará pelo menos cinco mil homens das forças armadas, uma esquadrilha de 33 aviões e uma base logística controlada a partir de Brasília, centro do poder nacional. Aí começará o Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia), que precedeu e sobreviverá ao irmão gêmeo.
Segurança nacional
Embora esses dois sistemas sejam apresentados como científicos, empenhados com a proteção ecológica, sua origem e sua aplicação principal são militares. Toda a sofisticada estrutura de produção de informações e de monitoramento das atividades, num espaço que ocupa mais de 60% do território brasileiro e eqüivale a toda a Europa, está subordinada à doutrina de segurança nacional e a diretrizes geopolíticas.
Tudo começou em setembro de 1990, quando a já extinta Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (sucedida, depois de atropelos sucessórios, pela Abin, a Agência Brasileira de Informações) e os ministérios da Aeronáutica e da Justiça apresentaram à presidência da República "a verdadeira realidade da Amazônia, com todos os seus problemas".
Para montar essa "verdadeira realidade", os doutrinadores geopolíticos dispensaram as demais instâncias oficiais. Apresentado como uma ferramenta científica, o Sivam surgiu sob o desconhecimento quase generalizado da comunidade científica, que foi ignorada. Só quando o projeto estava pronto e acabado é que pesquisadores foram incorporados ao empreendimento. Teriam que aceitar a estrutura paralela montada pelos idealizadores do sistema, ajustando-se a ela.
Algumas de suas partes já existiam em instituições como o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), a extinta Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) ou mesmo a Polícia Federal. Mas os criadores do Sivam queriam-no como uma estrutura completa e fechada, auto-suficiente, sob mando verticalizado e controle integral. Como uma unidade militar, ou militarizada.
A atribulada trajetória do Sivam seguiu esse esquema. A idéia "pegou" motivada pelo sobressalto com uma manobra militar na fronteira amazônica com a Guiana (ex-inglesa), comandada pelos Estados Unidos (à qual, desta vez, o Brasil não quis participar). Talvez os "marines" estivessem ensaiando invadir a maior fronteira de recursos naturais do planeta, instalar-se nela e se tornar donos de riquezas de cuja exploração (ou domínio) já participam regularmente, enquadrados nas permissivas regras legais brasileiras.
Em agosto de 1993, o presidente da República decidiu que não haveria necessidade de licitação para a aquisição dos equipamentos e serviços necessários à implantação do Sivam. Foi alegado que a divulgação dos requisitos técnicos, fundamentais para a compra, "comprometeria a segurança da nação". Uma comissão foi organizada para selecionar interessados e examinar suas propostas. Essa metodologia, diante do alto valor envolvido, gerou denúncias e suspeitas de favorecimento e de tráfico de influência, acabando por resultar num escândalo nacional. Mesmo assim, em maio de 1995, o presidente, para evitar "a descontinuidade da implantação do projeto", autorizou a assinatura do contrato comercial com a empresa Raytheon, um dos satélites do Pentágono, compromissada a manter segredo de tudo. As dúvidas pendentes foram deixadas de lado. Pendentes até hoje.
Em todas as estações dessa autêntica "via crucis", o interlocutor do projeto e quem decidiu pela sua continuidade foi o Conselho de Defesa Nacional. Não, por exemplo, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ou mesmo o Ministério da Ciência e da Tecnologia.
Criado para ajustar o polêmico Conselho de Segurança Nacional, um dos órgãos mais ativos e importantes do regime militar, aos propósitos democráticos da Constituição de 1988, o Conselho de Defesa Nacional só se reuniu até agora para tratar de Amazônia: da insegurança de suas fronteiras, da expansão da cobiça internacional, da pilhagem dos seus recursos genéticos, da ameaça do narcotráfico e do remédio para todos esses males, o sistema Sivam/Sipam.
A "realidade verdadeira" seria o estado de insegurança nacional na região. Para combatê-lo, a solução lógica seria reforçar a segurança nacional na maior porção supostamente homogênea do território nacional, sua reserva de riquezas para o futuro, que aguarda o Brasil há muito, embora deitado em berço esplêndido: ser uma das mais poderosas nações do globo.
A fragilidade quase intrínseca da região, aliás, impediu que ela participasse da festa nacional pela redemocratização. Enquanto prosseguia o projeto de transição ("lenta, segura e gradual") herdada dos déspotas esclarecidos do período anterior, a Nova República criava, em 1985, o Projeto Calha Norte. Ele significou o revigoramento da doutrina de segurança nacional, abolida no Brasil moderno, mas tendo que permanecer em vigor na fronteira, imberbe e insegura.
A velha-nova doutrina reforçara o alerta contra os inimigos, que agora estavam mais matizados e sofisticados, como as ONGs e seus aliados internos, agindo sob o escudo ecológico, ou mais poderosos em termos imediatos, como os narcotraficantes e seus parceiros eventuais, os guerrilheiros, ou, numa perspectiva mais ampla, o imperialismo americano (e seu cavalo de Tróia, o Plano Colômbia), carente dos insumos e informações biológicos (além de matérias-primas convencionais) para manter em movimento as engrenagens do império.
Zoneamento ecológico-econômico
Se não tivesse esse viés militar, o Sivam seria um formidável programa científico: afinal, representa mais de 20 anos de verba destinada a ciência e tecnologia. O tão lamentado e tão adiado zoneamento ecológico-econômico (que poderia ser a régua e o compasso a orientar a expansão das atividades humanas numa região que, tendo dois terços do espaço territorial, abriga apenas 12% da população do país), em duas décadas de descontínua existência, não mereceu nem 1% do que o Sivam engoliu em um qüinqüênio.
Uma vez montada a estrutura física e humana da vigilância, vai ser preciso gastar muito mais para manter em funcionamento uma organização voltada para monitorar 24 horas por dia o espaço aéreo e as incursões pelo solo amazônico, como se a região estivesse sendo palco de uma agressão externa não declarada, sistemática, organizada, com objetivo comum. O Calha Norte, que tem avançado trôpego, já reivindica R$ 1,6 bilhão para se atualizar e poder acompanhar o Sivam.
Mas o Calha Norte tem jurisdição sobre tão-somente metade dos nove mil quilômetros de fronteiras amazônicas. Sobre a outra metade, a competência é do Proffao, um Programa de Fortalecimento da Faixa de Fronteiras da Amazônia Ocidental, que ainda não saiu do papel, mas certamente vai ganhar alento quando o Sipam tiver que ser operacionalizado. Com tudo isso, haverá plena soberania sobre a Amazônia? A região estará recoberta pelo cinturão eletrônico da segurança nacional? Será mais corretamente aproveitada? Gerará maiores e melhores benefícios para sua população e os demais brasileiros?
Radam e desmatamento
Trinta anos atrás o governo militar realizou na Amazônia um projeto equivalente, o Radam (Radar da Amazônia). Sua finalidade era produzir conhecimento preciso sobre toda a região e estabelecer um padrão inteligente de utilização dos seus recursos naturais, colocando a ciência à frente do pioneiro, que invadia o interior da floresta através das grandes estradas de penetração, como a Transamazônica, na forma de hordas desorientadas, que provocaram o maior desmatamento da história da humanidade.
O que resultou de definitivo e vantajoso do Radam foi uma cartografia confiável e uma indicação genérica do espaço regional. Todo o resto, como os mapas de uso potencial da terra e as indicações para as reservas de conservação e proteção, se mostrou um glacê de qualidade duvidosa. A vigência do Radam, entretanto, não serviu para estabelecer o primado da razão na expansão da frente amazônica (marcadamente anárquica e caótica), nem assegurar o pleno controle nacional sobre riquezas que se internacionalizaram tanto no ponto de origem, da produção, como no de destino, da comercialização.
O Radam, contudo, era um programa incontestavelmente científico e civil, sob o controle de um governo militar. Já o Sivam é um programa militar e geopolítico em pleno regime civil. Ajustamento à história ou, pelo contrário, um descompasso desconcertante? Se os contemporâneos não responderem, a questão ficará para quem dela dará conta: o tempo.

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