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O símbolo de Barra Grande

OESP, Vida, p. A20
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
02 de Jun de 2005

O símbolo de Barra Grande

Marcos Sá Corrêa

Para os botânicos, ela se chama Dychia distachya. Para os leigos, não chegou a ter um nome vulgar, sinal da convivência de um povo com as plantas de sua terra. Em seu caso, não há tempo para muita intimidade. Ela vive exclusivamente nas margens dos Rios Uruguai e Pelotas, na divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina. Cobre o fundo dos canyons e, quando floresce, lança no chão pedregoso, como fogos de artifício, seus pendões alaranjados. Embora vistosa, parece ter o dom de ser invisível, pois só agora ganhou uma vaga na lista de espécies prestes a sumir, tragadas pelo lago artificial da usina de Barra Grande.
A bromélia estréia na longa novela da hidrelétrica às vésperas do último capítulo. Consta de um relatório recém-lançado pelo Projeto de Conservação de Espécies Reófitas no Sul do Brasil. Convém não perder de vista que "reófito" é um vegetal que se dá bem com água corrente. E represa, como se sabe, quer dizer água parada.
Os pesquisadores do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Santa Catarina que acharam a Dychia distachya avisam que, para lá de endêmica, ela só se encontra atualmente em três lugares do território brasileiro. Os três ficam no caminho das águas de Barra Grande. Biólogos catarinenses mandaram um alerta à ministra Marina Silva. Alegam que, concedendo a licença de operação para a usina, o Ibama estará autorizando oficialmente a extinção da espécie. O que não é o seu serviço.
O apelo chega a Brasília escoltado por fortes argumentos. Lembra que o Brasil, como signatário da Convenção da Diversidade Biológica, tem de evitar ataques genocidas à sua natureza. A Constituição obriga o poder público a proteger a fauna e a flora. E o decreto 750/93 recomenda especial cautela com projetos que ponham em risco o pouco que sobrou da mata atlântica, como a tal bromélia.
Pobre Dychia distachya. Logo com quem ela foi se meter. Do alto de seus 690 megawatts de prioridades energéticas, Barra Grande engole esses contratempos como borbulhas nas turbinas. Já passou por cima de coisas piores, como o relatório de impacto ambiental falsificado sobre o qual repousa há quase um ano, como fato consumado, seu paredão de concreto. A fraude é incontroversa. Isso nem a ministra Dilma Roussef, que defende as hidrelétricas, se arrisca a negar. Mas o escândalo só veio à tona quando a obra ficou pronta.
De lá para cá, a Engevix, empresa de engenharia que fez o relatório, foi multada pelo Ibama em R$ 10 milhões. Mas a Baesa, consórcio formado pela Camargo Corrêa, Votorantim, Bradesco, Alcoa e CPFL, que construiu a barragem, vem ganhando em várias instâncias da Justiça, do Governo Federal e do Ministério Público um atestado de inocência. Tapeada pela Engevix, ela teria percebido tarde demais que seu lago artificial inundaria 4,3 mil hectares de florestas de araucárias, legalmente intangíveis.
O problema é que a presunção de boa-fé trafega em mão única. Para os ambientalistas que brigam na Justiça vale o princípio de que eles não se mexeram enquanto era tempo. Logo, entraram em cena derrotados. Foram enganados pela Engevix como a Baesa. Mas, ao contrário da Baesa, não tinham o direito de acreditar em vigarice. Foi isso, mais ou menos, que disse outro dia o desembargador Vladimir Passos de Freitas, ao derrubar no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região a liminar que impedia o Ibama de dar o sinal verde para fecharem as comportas. Resultado, a Dichya distachya está com os dias contados. Futuro, para ela, só como símbolo do País em que as Barras Grandes acontecem.
Marcos Sá Corrêa é jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 02/06/2005, Vida, p. A20

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