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O sertanista morre no sertão que arde

Jornal Pessoal-Belém-PA
Autor: Lúcio Flávio Pinto
15 de Out de 2004

Um terrível sonho recorrente me ataca de tempos em tempos: um pivete me assalta e me mata, indiferente às minhas tentativas de convencê-lo que sou uma pessoa útil à sociedade, inclusive a marginais como ele. O pesadelo simboliza uma das minhas preocupações com crimes banais envolvendo personalidades públicas, o desperdício de talentos dedicados a causas coletivas em acontecimentos menores.

A memória do sonho me veio no domingo passado, mal abri, na tela do computador, a notícia da morte, na véspera, do sertanista Apoena Meireles. Ele recebeu dois dos três tiros que um homnem disparou contra ele, ao tentar assaltá-lo, à saída do caixa eletrônico de uma agência do Banco do Brasil em Porto Velho, capital de Rondônia. Apoena tentara reagir ao assalto, segundo a versão apresentada pelas autoridades. O crime seria comum, de latrocínio, como nos meus sonhos, embora sua vítima pudesse ter sido alvo de um atentado político, mais um desses crimes de encomenda já tão freqüentes em todo país.

Apesar das evidências em favor da primeira versão, ainda relutávamos em aceitá-la. Apoena tinha sido deslocado para Rondônia pela Funai (Fundação Nacional do Índio) para impedir a continuação da garimpagem de diamante na Reserva Roosevelt, dos índios Cintas-Largas. Centenas de milhões de reais estavam saindo do território indígena na forma de pedras preciosas. Muito dinheiro envolvido numa questão polêmica. Poderosos interesses foram e continuariam a ser contrariados. Abriam-se, portanto, veredas para qualquer hipótese.

Como o sertanista era também assessor especial da Presidência da República, o veio do crime de encomenda (e não de um infeliz incidente de crime comum) não podia ser logo abandonado. A Polícia Federal está testando-o neste momento em que escrevo. Alguns anos atrás eu (junto com outros enviados especiais da grande imprensa nacional) já estaria em Porto Velho, ponto de encontro que tinha, nessa época, com personagens de linha frente dos acontecimentos amazônicos, como Apoena.

Fomos juntos, quase 30 anos atrás, para uma das duas aldeias dos índios Suruí, no meio de um dos muitos fogaréus sociais que vivem irrompendo no interior da Amazônia, chagas humanas de um incêndio real que parece nunca ter fim. Colonos sulistas, muitos deles descendentes de europeus, haviam se apossado de 10% dos 220 mil hectares do Parque Indígena Aripuanã, vizinho do Roosevelt, umbilicalmente a ele vinculado por idas e vindas de Suruís e Cintas-Largas.

Foi Apoena quem deu esse nome, de Suruí, aos índios que se distribuíam pelas duas aldeias. Um gesto de amizade e solidariedade, mas equivocado. Os índios mesmo se apresentavam como Paíter, expressão através da qual reivindicavam o direito de ser tratados como gente. Erro parecido haviam cometido os Villas-Bôas com os índios que contataram a leste dali, no rio Peixoto de Azevedo, os Kreenakarore, que na verdade eram Panará.

Apoena e seu pai, Chico Meireles, talvez o maior dos sertanistas lato senso, assim como os três irmãos Vilas-Boas, foram pessoas respeitáveis, de uma heróica dedicação às causas que assumiram. Mas estavam sujeitos a misérias pessoais e circunstâncias externas. Antônio Callado retratou suas divergências em Quarup, romance que todas as pessoas interessadas em conhecer este gigante adormecido deviam tratar de ler. É ficção à cléf. Personagens reais aparecem com outros nomes, não muito diferentes. Chico Meireles é Chico Fontoura. Os Villas-Bôas são Vilas-Verdes.

Esses sertanistas sempre foram mandados às pressas fazer contato com tribos isoladas quando uma estrada, uma hidrelétrica ou um projeto de colonização deparava com elas. Aceitavam a ordem superior com a esperança de salvar os índios. Depois de algum tempo, porém, ficava difícil não chegar à conclusão de que foram amansar a destruição, amaciar o golpe, dourar a pílula fatal. Mas já não conseguiam viver de outra maneira, numa relação pendular entre o bom e o mau, o certo e o errado, o claro e o escuro, a mata e a cidade, uma mulher urbanizada e intelectualizada esperando-os em casa e a selvageria do sertão, os índios e os brancos. Agüentavam a barra, pesadíssima, através de derivativos. O álcool tem sido o mais comum.
Já bebi com vários deles no meio da mata, entre Suruí ou Gavião, Kayapó ou Xavante. Quando o álcool libera a voz, sua fala é de amargura, tristeza, frustração. De dia costumam recuperar o élan, o viço, a confiança. Trabalham como animais. Depois anoitece e volta o ciclo. Callado foi feliz na reconstituição do processo, centrado em Francisco Meireles, ou Chico Fontoura. Bêbado, Chico dizia que um dia desceria no Rio de Janeiro, então capital federal, e ajudaria os índios a flechar todos os burocratas do SPI (hoje, Funai) e associados para vingar tanta morte de índios - e morte inglória.

Meses atrás deparei numa livraria com um desses grandes sertanistas. Conhecemo-nos através dos Waimiri-Atroari, dos quais se tornou o maior especialista e, então, porta-voz. Hoje se dedica a ajudá-los através de um projeto patrocinado pela Eletronorte, também aplicado aos Parakanã. Os port-fólios dos resultados são coloridos e inconvincentes. Mas nunca mais voltei a conversar sob o toque de uma garrafa de álcool. Já não bebo há tempos. Esse sertanista, acho que também não. Continuo a respeitá-lo. Quanto aos resultados, são outros 500.

Foi dele que tive as mais recentes notícias sobre Apoena. Estava retirado, amargurado, bebia um pouco além da conta. Quando vi a imagem de Apoena no Fantástico do dia seguinte ao do seu assassinato não conseguia mais associá-lo ao sertanista que acompanhei em alguns episódios dessa sanguinolenta colonização da Amazônia, estrito senso, da minha idade, um homem calado, desconfiado, arguto, inteligente, ágil, longilíneo - um índio colocado do outro lado do balcão da sociedade. Do lado dos vencedores, dos autores do enredo, dos colonizadores. Com os quais, porém, Apoena Meireles jamais se identificou. Inclusive quando, meio a contragosto, sem jamais perder a consciência, os serviu. Nessas horas, ele bem sabia, estava errando.

Mas errar é humano. E foi como um personagem demasiado humano que, afinal, ele se foi, num episódio de estupidez e barbárie, como o que lhe serviu de cenário derradeiro, na Porto Velho dos nossos dias.
Velhíssima, apesar de tão nova.

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