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O sentido da perda

Valor Econômico, Opinião, p. A11
Autor: SILVA. Marina
30 de Jun de 2017

O sentido da perda

Marina Silva

Em um cenário marcado por acirramentos e polarizações, independentemente do lugar de fala há um ponto de concordância: o país está em situação de extrema vulnerabilidade. As recentes denúncias contra o presidente Michel Temer, por corrupção passiva no exercício do mandato, colocam o país em vergonhosa e constrangedora encruzilhada. Uma nação cujo presidente não tem mais nada a perder, atingiu tal ponto de fragilidade que ela, sim, tem tudo a perder.
O governo Dilma/Temer empenha-se no vale-tudo desenfreado para se manter no poder e garantir o direito ao foro privilegiado. Digo Dilma/Temer por uma razão bem objetiva: aliançados, ganharam fraudulentamente juntos, levaram o país a essa gravíssima crise juntos, praticaram os mesmos atos de corrupção juntos; foram absolvidos juntos, em decisão que deixou o país perplexo. E tentam juntos, às claras e sub-repticiamente, desmoralizar e enfraquecer a Operação Lava-Jato, inclusive unidos com o PSDB, principal base de sustentação da atual fase do desastre Dilma/Temer, também às voltas com seus implicados em corrupção. Não poderia ser diferente.
A forma como chegaram ao poder determinou a forma como desgovernam o país. Assim como no impeachment de Dilma, estamos diante de uma história que se repete. Com desaprovação recorde em 28 anos, Temer tem se refugiado nas mesmas manobras de sua antecessora. O fisiologismo virou sua principal base de sustentação, à falta de legitimidade, credibilidade e popularidade.
A resposta cínica se opõe a todos os esforços que a Operação Lava-Jato tem feito nos últimos três anos.
No lugar de combater a corrupção e a impunidade, o governo cria mecanismos que facilitam sua propagação por todo o sistema. A reação do presidente Temer diante da denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal Federal diz muito. A regra "moralizadora" que o presidente instituiu para seus ministros investigados pela Operação Lava-Jato, de afastamento temporário em caso de denúncia, não tem validade para si próprio. Segundo ele, tudo não passa de "ficção" e "trama de novela". Aliás, um presidente tratar dessa maneira assunto de tão inédita gravidade já indica por si mesmo o seu tamanho e o tamanho da nossa tragédia.
O projeto de poder, ao ser transformado em um fim em si mesmo - no governo do PT e agora do PMDB com apoio do PSDB -, tem produzido consequências nefastas para o país. Perdeu-se o horizonte do que seria estratégico às custas da distribuição de favores, aumentando o fosso de descrença da sociedade brasileira, além da desmoralização perante governos de outros países. O caso recente do corte de parcela significativa do financiamento do governo da Noruega para o Fundo Amazônia é ilustrativo dos inúmeros retrocessos em andamento.
O Fundo Amazônia, criado em 2008, atingiu resultados positivos já nos primeiros anos do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAM), que foi implementado a partir de março de 2004. Nos três primeiros anos, mesmo em ambiente de crescimento econômico, houve queda significativa do desmatamento por meio de diversas ações integradas de ordenamento territorial, monitoramento e controle, e fomento a atividades produtivas sustentáveis, envolvendo 13 ministérios.
Com base nesse trabalho que coordenamos no Ministério do Meio Ambiente, de reversão do aumento do desmatamento para uma tendência de queda em anos consecutivos entre 2004 e 2007, o governo norueguês decidiu doar ao Brasil US$ 1 bilhão, o que tornou possível a criação do Fundo Amazônia.
Desde o início, o apoio esteve condicionado aos resultados que o Brasil obteria na redução do desmatamento na Floresta Amazônica no ano anterior, em comparação à média histórica dos últimos dez anos. Com o recrudescimento do desmatamento a partir de 2014 e nos anos seguintes - de 5 mil para 8 mil quilômetros quadrados - a Noruega provavelmente reduzirá este ano em 50% o valor anual para o fundo.
A mensagem encaminhada pelo ministro do Clima e Meio Ambiente da Noruega, Vidar Helgesen, é constrangedora. Traz enorme lista de motivos para o corte de recursos, entre os quais o aumento da taxa de desmatamento, mudanças na política ambiental, redução das unidades de conservação, além do fato de cada vez mais o governo ceder à pauta do segmento atrasado de um setor que tem como estratégia expandir a fronteira agrícola em vez de investir em tecnologia para aumento de produtividade. Pesou também a redução significativa do orçamento para a área ambiental.
Diante do rompimento de compromissos com a agenda ambiental, o governo alemão, segundo maior colaborador do Fundo Amazônia, também sinalizou que deve reduzir seu apoio, caso seja confirmado o aumento do desmatamento em 2016. Mas o governo brasileiro, aparentemente, não registra a gravidade disso tudo, assoberbado que está pela administração da defesa das denúncias contra o presidente.
O país precisa voltar a assumir compromissos com base em uma agenda estratégica pactuada com a sociedade. A manutenção de um governo que se camufla com o discurso de estar a serviço do desenvolvimento do país para esconder as piores práticas de usurpação do poder, tem provocado fricções institucionais preocupantes. A responsabilidade de governo com o bem estar de todos e com o país precisa conquistar seu lugar.
Com Temer, já sabemos que ela não tem vez. Costumamos pensar que o que pode destruir uma sociedade são as guerras e as grandes catástrofes naturais, mas, hoje, mais do que nunca, é preciso atentar, como alertou Adolf Guggenbuhl Craig, para o perigo da destruição causada pelos que perderam o freio de sua desmedida sede de poder. O sentido dessa perda não pode, contudo, nos aprisionar na apatia de uma perda de sentido que nos levará ao sério risco de estarmos colocando tudo a perder.

Marina Silva, ex-senadora e fundadora da Rede Sustentabilidade, foi ministra do Meio Ambiente e candidata à Presidência da República em 2010 e em 2014. Escreve mensalmente neste espaço.

Valor Econômico, 30/06/2017, Opinião, p. A11

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