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O segundo empate do Amazonas

JB, JB Ecológico, p. 36-39
Autor: VIANA, Virgílio
08 de Dez de 2003

O segundo empate do Amazonas

Virgílio Viana

Mineiro de BH, 42 anos, PhD em biologia evolutiva pela Universidade de Havard, o engenheiro florestal, professor e secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas, Virgílio Viana, também lembrou os 15 anos de morte do líder seringueiro. À frente do Programa Zona Franca Verde, que pretende se tornar o grito de liberdade econômica do povo amazônico, ele lamentou o fato do Amazonas ainda ser, contraditoriamente, a região mais verde e rica ambientalmente do planeta e a mais cheia de contrastes sociais e ecológicos. A sua esperança, ele mostra nesta entrevista, reside em um segundo "empate", já posto em prática naquele estado, em memória de Chico Mendes.

Virgílio Viana: "Temos de deixar de desmatar não por uma idéia romântica, mas por uma questão objetiva, econômica e social"

JB Ecológico - O senhor é conhecido por não concordar com o conceito usualmente aceito do desenvolvimento sustentável, particularmente na realidade do Estado do Amazonas. Ao contrário, defende o envolvimento sustentável. O que vem a ser isso?

Virgílio Viana - Um dos maiores problemas que a gente tem no Brasil é o êxodo rural, a perda das raízes culturais, um problema realmente grande no Amazonas. 75% da nossa população hoje é urbana, 50% vivem em Manaus, em um ambiente degradado. Isso é uma reversão drástica de um quadro de um Estado que era predominantemente rural há apenas duas ou três décadas. Nós precisamos fazer com que as pessoas mantenham o seu envolvimento. Daí o nosso conceito de "envolvimento sustentado". Nós precisamos manter os laços das pessoas com a natureza, porque lá elas são dignas, elas têm um conhecimento valioso. São capazes de fazer o uso sustentável do seu meio ambiente de uma forma que outras pessoas não têm. E um saber, que nós chamamos de etno-ecológico que, somado à ciência, é a combinação essencial e viável do uso sustentado dos nossos recursos naturais.

JB - Qual seria o exemplo trágico no Amazonas com relação ao "desenvolvimento", das pessoas se "desenvolverem" e, assim, perderem a real sustentabilidade que o envolvimento que o senhor defende consegue?

Virgílio Viana - Talvez o mais simbólico seja a saída dos indígenas. Hoje nós temos indígenas deixando suas terras já demarcadas por falta de alternativas de auto-sustentação econômica. E esses indígenas primeiro vão para uma cidadezinha próxima, depois terminam em Manaus. Esse processo de êxodo que está relacionado com a erosão cultural (a perda de uma cultura e desse saber etno-ecológico) é na verdade um tiro que nós estamos dando nos pés. E a gente tem hoje, ligado ao êxodo rural, comunidades inteiras que tinham toda a riqueza de uma floresta única no planeta e agora estão vivendo nas periferias dos pequenos municípios, dependendo de cestas básicas da prefeitura. Isso é um paradoxo, porque elas são detentoras de riquezas valiosíssimas. As terras indígenas valem bilhões do ponto de vista da indústria pesqueira, dos madeireiros, e seus verdadeiros donos são miseráveis. O desafio nosso é fazer com que essas pessoas possam usar de maneira sustentável os recursos naturais que dispõem e tenham auto-suficiência, sem dependerem mais de governo, nem de Ong"s, nem de doações internacionais.

JB - Como o senhor define a situação sócio-ambiental do Amazonas hoje?

Virgílio Viana - Nós temos duas situações: a do interior e da capital. No interior, está o povo mais sofrido. O fim do ciclo da borracha, que foi responsável pela grande ocupação desse Estado, obrigou o homem da floresta a explorar o peixe, os bichos de casco e a madeira. Aí vieram as leis e a fiscalização do Ibama, mas nenhuma instrução ou educação junto com elas. E do ribeirinho, aquele que tira madeira com machado, passou a ser cobrada ATPF e outros documentos. Novamente, ele se viu obrigado a desistir de sobreviver cortando e vendendo madeira. E o êxodo rural aumentou. O homem da floresta foi para as sedes dos municípios ou veio para Manaus. O que se vê, atualmente, são calhas de rios inteiros sendo esvaziados. Enquanto na capital há um inchaço populacional e um crescimento desordenado que vem provocando desmatamentos, aumento de lixo, poluição de igarapés e uma situação socioeconômica preocupante. Só para se ter uma idéia, mais de 80% dos igarapés de Manaus estão poluídos, coberto de lixo de todos os tipos. Não há dados sobre a devastação das matas, mas sabe-se que as invasões de terrenos seguem para as áreas onde há floresta.

JB - E o povo que ficou no interior, como está hoje?

Virgílio Viana - Houve uma quebra na economia. O regatão, um barco típico da região, que fazia o escoamento da produção, deixou de fazer as viagens porque já não tinha o que trazer para as cidades. Os habitantes da floresta que viviam da pesca, do bicho de casco e da madeira ficaram sem renda e alguns sem emprego. Um dado mostra claramente isso. Somente no Alto Solimões, 80% das madeireiras estão fechadas e em uma delas, 13 trabalhadores que perderam o emprego se tornaram "mulas" do tráfico de drogas e estão presos.

JB - Apesar dessa quebra na exploração da madeira e pesca, o desmatamento no Amazonas prossegue e os recursos pesqueiros continuam ameaçados.

Virgílio Viana - É verdade. Mas isso ocorre por região e não no Estado todo. A floresta, por exemplo, sofre uma pressão maior no sul do Amazonas, onde o processo de desmatamento vem ocorrendo em virtude da expansão da fronteira agrícola, a maioria para o plantio de soja, tal qual aconteceu em Rondônia e no Pará. E é tudo desmatamento legal, porque a legislação em vigor dá mais facilmente uma permissão para derrubar a floresta do que para mantê-la em pé. Isso é um absurdo, mas é a realidade.

JB -. O que hoje, 15 anos após sua morte, o Amazonas tem para falar sobre Chico Mendes?

Virgílio Viana - Eu trabalhei no Acre desde 1990, e acompanhei todo o trabalho da Cooperativa Agroextrativista de Xapuri, a cooperativa Chico Mendes. O que nós víamos pelas imagens de satélite das áreas das reservas extrativistas eram desmatamentos feitos pelos próprios seringueiros. Depois de feito empate (nome que se deu à luta dos seringueiros para proteger fisicamente a floresta dos seus devastadores, fazendeiros e madeireiros), o que estava aberto, as pessoas ali estavam e continuam desmatando, porque vêem no desmatamento e na agricultura uma melhor, senão a única, alternativa de vida, de sobrevivência. Então aí é que surgiu o conceito do segundo empate, que é o auto-empate. É o seringueiro, em vez de empatar o fazendeiro, o madeireiro, é ele próprio se empatando, dando o exemplo de deixar também de desmatar. Mas não por uma luta armada, de conflito, pelo enfrentamento físico, mas por um empate econômico.

JB - Como assim?

Virgílio Viana - Esse segundo empate é um empate manso. É o homem amazonense deixando de desmatar não por uma idéia romântica, mas por uma questão objetiva, econômica, social. Nós fizemos o manejo florestal com selo verde. O primeiro a ser certificado foi em Xapuri, onde o seringueiro está tirando mais dinheiro da madeira com a floresta em pé do que desmatando para plantar arroz, milho, feijão, macaxeira ou fazer pasto. Esse segundo empate é talvez o maior desafio contemporâneo do legado do Chico Mendes, porque nós ainda temos o desafio do primeiro empate no sentido da criação de reservas extrativistas em outros lugares. E nós já temos criada no Amazonas, pelo governo atual, a primeira reserva extrativista do Estado.

JB - A ministra Marina Silva diz que todo mundo se preocupa com o meio ambiente, a natureza, mas com a natureza do outro. No caso desse segundo empate, seria o próprio seringueiro dando o auto-exemplo, não desmatando? É por aí?

Virgílio Viana - É isso. E não só o seringueiro. Existe o indígena, também, que faz parte dos assentamentos. O desafio, enfim, é demonstrarmos para o mundo e para nós mesmos, sem exceção ou exclusão, que a floresta em pé dá mais retomo financeiro hoje para os seus protagonistas, aqueles que estão na região, sejam eles pequenos, médios ou grande, seringueiros, índios ou fazendeiros. Esse é o empate contemporâneo que vejo. O empate do Chico Mendes é fazer com que a floresta fique mais valiosa, porque o que move o processo não é uma atitude desprendida de uma lógica econômica. É o contrário, é um processo que também tem a sua lógica econômica. As pessoas, desde que de maneira sustentável, desmatam por inteligência, por racionalidade. Hoje o desmatamento não é algo irracional, ele é determinado em função de uma política de crédito. O que nós precisamos é criar uma lógica favorável à conservação da floresta. E essa lógica é econômica. É possível se viver de uma economia florestal, como da Escandinávia, da Finlândia.
Nós podemos, sim, fazer o manejo de florestas tropicais de forma sustentável, produzindo a madeira, um produto não-madeireiro e um terceiro componente a ser valorizado cada dia mais, que são os serviços ambientais. Isso precisa virar dinheiro no bolso do seringueiro, do produtor.

JB - Essa idéia de um segundo empate com os povos da floresta em defesa de sua agenda verde, também pode ser aplicada para as outras agendas, a azul e a marrom?

Virgílio Viana - Sem dúvida. Nós vamos fazer com que a conservação ambiental tenha uma lógica econômica. Nós vivemos em um mundo onde a tomada de decisão tem um componente econômico muito forte. E a lógica tem outros componentes. O grande motor ambiental é esse. Precisamos fazer na agenda azul uma forma de estimular a conservação dos recursos hídricos. É preciso ter um estímulo à conservação das matas ciliares. De alguma forma nós precisamos fazer com que isso seja um bom negócio porque se for uma imposição da lei isso não funciona. A lei tem que impor, mas não podemos pensar em uma política ambiental contemporânea dependendo apenas dos instrumentos de fiscalização e controle. Não funciona. E isso já vem sendo dito há vinte anos.

JB - O que é novo?

Virgílio Viana - É fazer isso acontecer como estamos fazendo no Amazonas.
Como apoio do governador Eduardo Braga que, desde a sua campanha, abraçou a causa, nós criamos a política de crédito florestal, o Pró-Floresta, com créditos de até R$ 50.000,00 e 6% de juros ao ano, para o pequeno empresário florestal que fabrica a andiroba. Criamos um cartão Zona Franca Verde, que inclui a pessoa física, de R$ 200 a R$ 3.000, para aquele cidadão que quer comprar uma pequena marcenaria ou melhorar a sua
Estamos oferecendo assistência técnica, o que nunca existiu na Amazônia.

JB - Como nunca existiu?

Virgílio Viana - É verdade. Na maior floresta tropical do mundo ainda não havia um serviço técnico que ensinasse, de forma auto-sustentável, como retirar a madeira. Nós criamos agora a Agência de Florestas, a primeira no Brasil, que ensina as pessoas fazerem não só o manejo sustentável, como as ajuda na gestão do seu negócio florestal, seja ele óleo do buriti, madeira ou cipó. Temos, finalmente, uma política de desenvolvimento ecológico para isso. Temos uma esperança, um programa de governo que respeita o saber local e tem os pés no chão.

É o que o JB Ecológico estará mostrando ainda lembrando Chico Mendes, na sua edição do dia sete de janeiro, primeira lua cheia de 2004.

JB, 08/12/2003, JB Ecológico, p. 36-39

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