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O século da escassez

O Globo, País, p. 9
22 de Mar de 2018

O século da escassez

ANA LUCIA AZEVEDO DANIELLE NOGUEIRA
opais@oglobo.com.br

A desigualdade no Brasil se vê em distribuição de renda, gênero e raça. Mas se torna invisível quando se trata do recurso mais essencial, a água. Nenhum país é mais rico; possuímos 12,8% do volume da Terra. Mas a abundância concentra-se nos rios da Amazônia, região com 80% dos reservatórios e só 7% população. As áreas litorâneas, onde vivem 45% dos brasileiros, dispõem de menos de 3% dos recursos, mostra a Agência Nacional de Águas (ANA). Sob o mito da abundância, sepultado por especialistas, em 20 anos o volume de água retirado de nossos 12 mil rios aumentou 80%. A estimativa é que até 2030 cresça 30%. Mas não há, literalmente, clima para isso ocorrer. Nos últimos seis anos, a escassez predominou, com crises hídricas no Sudeste e a maior seca registrada desde 1900 no Nordeste.
No Brasil do século XXI, água abundante tem; mas acabou para a maioria. Entre 2013 e 2016, a seca deixou em situação de emergência 2.783 municípios brasileiros, ou metade das nossas cidades (84% no Nordeste). As vidas de 48 milhões de pessoas, praticamente um quarto dos brasileiros, foram afetadas, revela a "Conjuntura de Recursos Hídricos do Brasil 2017", da ANA.
- O brasileiro crê no mito da disponibilidade ilimitada de água, que, na verdade, é mal distribuída e escassa onde há mais demanda. A seca só agrava uma crise que a degradação e o mau uso provocaram. Todas as nossas grandes cidades têm problemas. Transposições mirabolantes não farão milagre. Faltam planejamento e gestão. A água tem custo econômico, que ninguém quer pagar. Passou da hora de encarar a realidade - afirma José Galizia Tundisi, grande estudioso dos recursos hídricos do Brasil.
Nos últimos seis anos, o país registrou chuvas acima da média no Sul e abaixo em Sudeste, Nordeste, parte do Centro-Oeste e até na Amazônia. O desequilíbrio é condizente com um cenário de mudança climática permanente, que aponta, por exemplo, à desertificação de 50% do semiárido brasileiro nas próximas décadas.
- Há uma tendência muito preocupante de extremos climáticos, com chuva concentrada e seca prolongada. Isso é péssimo para a oferta de água - adverte Carlos Nobre, um dos mais respeitados climatologistas do país.
SOLUÇÃO NÃO ESTÁ APENAS NA ENGENHARIA
Para os cientistas, rogar aos céus por chuva não adianta, pois problema e solução estão na terra. A crise hídrica é um legado de décadas de uso e exploração descontrolados, como por exemplo pela agropecuária, que utiliza 78,3% dos 1.081,3 metros cúbicos de água por segundo consumidos no país e é responsável pelo lançamento de agrotóxicos em aquíferos.
- Temos uma agricultura que avançou em produção, mas ainda engatinha em uso da água - explica Marcos Freitas, coordenador do Instituto Internacional de Mudanças Globais (IVIG).
A crise também alimenta-se do saneamento rudimentar, já que apenas 44% dos brasileiros têm esgoto tratado. O desperdício de água - evidenciado em costumes como lavar a calçada, mas também nos 35% de perda com vazamentos nas redes de abastecimento - é outro fator importante a ser combatido.
- A água seria suficiente se não fosse desperdiçada e usada sem planejamento - diz Tundisi.
Para Anivaldo Miranda, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, "o Brasil continua na década de 20 do século passado no que diz respeito ao uso da água":
- O país acha que solução para escassez é fazer obras caras de engenharia. Se formos resolver todos os problemas com transposições, daqui a pouco estaremos buscando água na Amazônia, e sem resolver a crise hídrica.
Para ajudar o Brasil a fazer a travessia deste século da escassez, o GLOBO percorreu 4 mil quilômetros de Rio, Bahia, Pernambuco, Goiás e Distrito Federal e inicia hoje, Dia Mundial da Água, uma série especial sobre a crise hídrica. Até o domingo, na edição impressa e em ambiente especial no site, que contará com conteúdos ampliados e exclusivos, reportagens vão explorar causas e consequências da destruição ambiental, da utilização desregulada dos recursos naturais e do descaso com saneamento, e discutir soluções.

'A água potável é mais cara'
Uma das vozes mais influentes no debate sobre gestão de recursos hídricos no Brasil, secretário receita tecnologia e regulação para restringir uso do insumo

PATRIK CAMPOREZ
pmacao@edglobo.com.br

Presidente do Conselho Mundial da Água, Benedito Braga afirma que é preciso elevar investimentos em segurança hídrica para evitar o colapso de grandes cidades. Ele, que também é secretário de Saneamento de São Paulo, recomenda dedicação ao entendimento dos efeitos das mudanças climáticas. E alerta para uma constatação espinhosa para famílias e setor produtivo, uma vez que a água é um bem pelo qual paga-se pouco no país: "Água potável é uma água mais cara".
Os governantes estão levando a sério a questão hídrica no Brasil?
Há espaço para que os políticos deem sinalização mais forte no sentido de fortalecimento administrativo e mobilização de orçamento mais significativa para a água, para o saneamento e o aumento da segurança hídrica.
O que falta o país fazer?
Os cientistas falam em secas mais longas, teremos de ter a capacidade de armazenar água (construção de reservatórios e adutoras). Temos que observar a demanda. Tem que ser mais eficiente, ter o uso mais racional, reuso e entender que a água potável é uma água mais cara, que passa por processo de tratamento. Temos que ter um sistema de agricultura que valorize o uso de irrigação mais eficiente do que os tradicionais. Usar a tecnologia de previsão de tempo e clima para irrigar só quando for extremamente importante é outra questão.
E do lado da demanda por água?
Precisamos de instituições públicas reguladoras mais eficientes. Isso passa por convencer a classe política a dar condições às agências reguladoras estaduais.
Quais regiões do país enfrentam situações mais críticas?
O Nordeste é das mais críticas. Temos grandes açudes com nível de armazenamento muito baixo e que requerem gestão importante da demanda. Temos que parar com a irrigação e focar no abastecimento humano. Também precisamos de mais reflexão sobre as mudanças climáticas. O foco tem sido a energia, a mitigação das emissões de CO2, o aquecimento global. É importante que nos tornemos mais resilientes às variações do clima.
O mundo está de olho nas águas doces do Brasil?
Há um mito em torno da ideia de que virão buscar nossas águas. A água é um ativo precioso, mas não a ponto de valer a pena trazer um navio tanque e levar a nossa água para o Oriente Médio. O que posso dizer é que estamos exportando nossa água por meio de produtos agrícolas. Esses países de certa forma estão recebendo nossa água incorporada na soja, na carne.
Há desespero em cidades onde o racionamento de água virou algo cotidiano.
A água tem que estar disponível para todos. Por exemplo, essa questão de produtores rurais saírem furando poço indevidamente tem que ser resolvida pelo órgão gestor estadual. Muitos não estão devidamente aparelhados para fazer esse trabalho. Por isso, a falta de acesso à água geralmente afeta os mais pobres, aquelas pessoas que moram em regiões mais afastadas. É uma situação que precisa ser corrigida para que os menos favorecidos não sejam mais prejudicados.
O saneamento deve ser prioritário?
Sim. A Organização Mundial da Saúde diz que, para cada real investido, a economia é de R$ 4 no setor de saúde pública. As doenças de veiculação hídrica são as que afetam principalmente as crianças, que tomam água contaminada e passam a ter doenças, como diarreia, que eventualmente podem até chegar ao óbito. Saneamento significa saúde.

O Globo, 22/03/2018, País, p. 9

https://oglobo.globo.com/brasil/morre-um-dos-mais-populares-mitos-brasi…

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