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'O saber ancestral é valioso para bioeconomia', afirma o cientista Mario Christian Meyer

OESP - https://cultura.estadao.com.br/blogs/direto-da-fonte
Autor: MEYER, Mario-Christian
19 de Out de 2020

'O saber ancestral é valioso para bioeconomia', afirma o cientista Mario Christian Meyer

Sonia Racy

19 de outubro de 2020 | 00h40

Em 1992, quando era membro da delegação oficial do Estado do Amazonas na cúpula de chefes de estado da ECO-92, Mario Christian Meyer já falava em um assunto pouco conhecido: a bioeconomia. Fundador do Programa Internacional de Salvaguarda da Amazônia para o Desenvolvimento Sustentável, o professor suíço-brasileiro, casado com a atriz Charlotte Rampling, acredita que está mais do que na hora de o Brasil e o mundo colocarem atenção necessária para promover esse tipo de investimento. "Torna-se urgente implementar a aliança entre as tecnologias dos países avançados e os saberes tradicionais dos povos da floresta que conhecem os ecossistemas e a biodiversidade locais. O modelo desta aliança já existe. Estamos com a faca e o queijo na mão: é suficiente saber cortá-lo de modo equitativo. Basta agir", afirma. Abaixo, os melhores trechos da entrevista concedida de Paris, por e-mail, à repórter Marilia Neustein.

Se o senhor pudesse fazer um raio X da situação do meio ambiente no Brasil hoje, quais pontos destacaria?

Questão complexa. Como cientista devo ater-me aos fatos, sem especulações que pulam nas mídias internacionais. O Brasil enfrenta desafios, que entendo serem mais de ordem conjuntural. É pioneiro na promoção da defesa do meio ambiente, tendo sediado a primeira conferência internacional no âmbito das Nações Unidas sobre o assunto, a Rio-92, e foi ator decisivo da definição do conceito de desenvolvimento sustentável. O País tem uma das mais modernas legislações de defesa da preservação ambiental e é parte importante de convenções e acordos internacionais sobre a matéria, além de ter vasto potencial para o desenvolvimento da economia verde dentro da perspectiva da sustentabilidade.

Mas o senhor acredita em uma nova proposta para lidar com esse assunto?
Como solução para os problemas atuais, todos os indicadores científico-tecnológicos e organizacionais demonstram que a principal medida para a proteção ambiental é a criação de uma nova bioeconomia equitativa e de alto valor agregado para que a conta de carbono seja realmente mínima.

Quais são os desafios que o Brasil tem pela frente a curto, médio e longo prazo?
O principal desafio reside na implementação do seu arcabouço legal, doméstico e internacional. O Brasil também precisa reforçar sua capacidade de combate a queimadas, à exploração ilegal de madeira, ocupação ilegal de terras indígenas, garimpo... e à biopirataria que só beneficia laboratórios estrangeiros em detrimento da Amazônia e do capital verde nacional.

Como fazer isso?
Estou seguro que é do interesse do País, inclusive em termos econômicos, a promoção do desenvolvimento sustentável, pois hoje graças à evolução da ciência, dispomos das tecnologias para proteção da natureza através da valorização econômica da biodiversidade. Outro desafio consiste em implementar medidas na estrita observância da "Política Nacional da Biodiversidade" e particularmente da "Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais", bem como da "Política para o Desenvolvimento das Biotecnologias" a fim de que se faça valer a máxima de que uma árvore de pé vale mais do que uma árvore derrubada.

Sobre a Amazônia o que podemos esperar nos próximos anos se a política não mudar?
Há hoje grande compromisso por parte de todos os países no apoio e na promoção da economia verde, sendo que as populações dos grandes mercados consumidores estão cada vez mais seletivas quanto à aquisição de produtos e privilegiam aqueles cujo processo produtivo seja sustentável.

Não levar isso em conta pode ser problemático?
Sim, e também poderá tornar as exportações brasileiras de produtos do agronegócio passíveis de vulnerabilidades e até de retaliações comerciais. É capital que se materializa, por meio de projetos eco-etno-biotecnológicos. Os propósitos e metas do Conselho Nacional da Amazônia valorizam a biodiversidade em todas as suas vertentes - de forma equilibrada e contemplando os aspectos éticos pertinentes - para fomentar a implantação da nova e promissora bioeconomia.

O presidente Bolsonaro fez discurso na ONU, defendendo as ações de seu governo e disse que é pró-meio ambiente.
Trata-se de uma questão sensível, devido a um jogo complexo de interesses internacionais em diferentes níveis: econômico-financeiros, políticos, sociais que exigem uma análise muito realista, quase cínica. Sem esquecer a prioridade absoluta da preservação do meio ambiente para não deixarmos uma conta excessivamente alta a ser paga pelas futuras gerações.

Existe interesse internacional nas riquezas naturais do Brasil?
Efetivamente, as riquezas naturais da Amazônia são cobiçadas por muitos países participantes da reunião da ONU que devem encontrar um equilíbrio conjunto e integrado entre os imperativos econômicos - para assegurar sua competitividade internacional - e as exigências ambientais, para não decepcionar a vertente ecologista. É importante implementar com urgência a aliança entre as tecnologias dos países avançados - que proclamam respeito à natureza - e os saberes tradicionais dos povos da floresta que conhecem os ecossistemas e a biodiversidade locais. O modelo desta aliança já existe. Estamos com a faca e o queijo na mão: é suficiente saber cortá-lo de modo equitativo. Basta agir.

O sr. já afirmou que é necessário olhar para a cultura ancestral indígena também como uma forma de ajuda no desenvolvimento de economias ligadas à floresta. O que falta para isso acontecer?
É uma questão vital. Os saberes ancestrais são hoje reconhecidamente valiosos para a nova bioeconomia e a criação de empregos verdes. No contexto atual da pandemia, é importante não esquecermos a contribuição essencial de nossos indígenas da Amazônia para a saúde do homem e, agora, para a luta contra a Covid-19, uma vez que a região oferece ao mundo princípios ativos fundamentais para o seu tratamento.

E como é a melhor maneira de desenvolver e profissionalizar esse tipo e conhecimento?
Olhando para preciosa economia do conhecimento que valorizará a bioeconomia. Lembremos que a Amazônia e os índios já legaram à ciência ocidental e à indústria muitos princípios ativos essenciais, a exemplo da guaranina, da emetina, artemisinina ou, ainda, como a pilocarpina, e o captopril, comercializados por dois dos cinco maiores laboratórios farmacêuticos do globo. Na Amazônia, certamente estão muitas respostas que a medicina precisa para curar os males que afligem a humanidade. Sem falar dos trilhões gerados pela borracha...

Como ativar a bioeconomia?
Para desenvolver essa bioeconomia salvadora na floresta devemos associar as biotecnologias verdes já disponíveis e conhecimentos ancestrais sobre os princípios ativos das plantas medicinais. A primeira garante a valorização da biodiversidade, e o segundo a bioprodução local, a fim de que parte significativa do lucro fique no Brasil.

Por que acredita que a sustentabilidade e a preservação das florestas ainda não são uma questão prioritária para muitos governos no mundo?
Porque, lamentavelmente, eles ainda não compreenderam que a economia verde, associada ao desenvolvimento das inovações tecnológicas pode tornar-se em médio prazo tão competitiva, até mais do que as clássicas que são predadoras do patrimônio natural e dependentes das energias fósseis. A famosa globalização se concentra, infelizmente, nas reivindicações econômico-financeiras a curto prazo, deixando em segundo plano as urgências ambientais. Esse é o problema.

E qual deve ser a responsabilidade das empresas a caminho dessa sustentabilidade?
É essencial, pois sem valorização dos produtos e serviços da floresta não haverá preservação dos recursos naturais. Além da farmacologia, cosmética e nutracêutica, outras indústrias, como o turismo verde, podem beneficiar-se dos princípios ativos purificados pelas plataformas eco-etno- biotecnológicas que servirão de base para a fabricação de produtos acabados de alto valor agregado. Por outro lado, até o agronegócio acabou se convencendo da necessidade de respeitar as diretivas do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas.

A ciência passa por uma crise de questionamentos nessa era da pós-verdade. Acredita que os cientistas deveriam repensar a forma como têm divulgado as informações? Devem ser menos herméticos para chegar à população?
Desde os primórdios, a ciência evolui por ensaio e erro. A única diferença é que hoje a mídia - tradicional e das redes sociais - se tornou onipresente na difusão dos dados científicos preliminares por "peritos de ocasião", antes mesmo que esses tenham sido confirmados pela ciência, oferecendo-nos um festival de hipóteses contraditórias. Além disso, muitos desses "especialistas" tomaram gosto em aparecer e passaram a adorar o papel de mocinhos da TV, o que resultou numa guerra de egos em prejuízo da verdadeira ciência.

O que mais o senhor acrescentaria?
Para concluirmos com uma nota de esperança: considerando-se que a tecnologia já nos forneceu instrumentos suficientes que estão prontos para serem implementados. O objetivo é a valorização das riquezas naturais, que não só preservam como.

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