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O raro peixe-boi da Amazonia se esconde para sobreviver ao homem

OESP, Vida, p.A26
04 de Set de 2005

O raro peixe-boi da Amazônia se esconde para sobreviver ao homem
Mesmo sem vê-los, pesquisadores lutam para preservar a espécie colhendo dados, ironicamente, da maior ameaça – os caçadores
Herton Escobar
Eles são grandes, lentos e estão espalhados por toda a Bacia Amazônica, mas muito raramente se permitem ser vistos na natureza. Não por timidez, mas por uma questão de sobrevivência. Décadas de perseguição e caça predatória transformaram o carismático peixe-boi amazônico em um animal arredio e assustado, que procura se esconder do homem sempre que possível. Hoje, mesmo sem conseguir enxergá-los, pesquisadores lutam para preservá-los dos arpões dos ribeirinhos e chegar a algum tipo de estimativa sobre as condições populacionais da espécie.
A pesquisa mais recente estava prevista para terminar hoje, com a chegada da oitava expedição fluvial do Projeto Peixe-Boi Amazônico ao porto de Santarém, no Pará. Em cinco anos, o projeto já visitou mais de 600 comunidades ribeirinhas e realizou mais de mil entrevistas com a população, incluindo os próprios caçadores.
Ironicamente, aqueles que ameaçam a sobrevivência da espécie são também aqueles que guardam as informações necessárias para preservá-la. "Não temos como verificar a abundância desses animais diretamente", explica a pesquisadora Fábia Luna, do Centro Mamíferos Aquáticos do Ibama, em Itamaracá (PE), que coordena o estudo. "O único jeito é assim, por entrevistas com os pescadores."
Além das barreiras naturais criadas pelas águas escuras e a grandeza dos rios, o peixe-boi já aprendeu - por força da experiência e da seleção natural - que não é boa idéia ficar com a cabeça para fora dágua na presença de seres humanos. "A pressão da caça fez com que só os animais mais arredios sobrevivessem, por isso hoje é muito difícil ver um peixe-boi", afirma Fábia. Nos 18 mil quilômetros de rios já percorridos pelo projeto, ela viu apenas dois. E de relance. "É coisa muito rápida; você só vê um matinho se mexendo." Quando acuado, o animal pode ficar mais de 20 minutos submerso, sem respirar.
Infelizmente, quem mais enxerga o peixe-boi amazônico ainda são os caçadores. Apesar de a espécie ser protegida por lei desde 1967, a caça persiste entre as comunidades ribeirinhas, que utilizam o animal como fonte de alimento. "Em todas as comunidades que visitamos há alguém que sabe caçar", relata Fábia. No auge da predação comercial, durante a década de 50, a espécie era cobiçada pela grande quantidade de carne, couro e gordura. Segundo Fábia, mais de 10 mil animais chegaram a ser mortos por ano para abastecer o mercado europeu. Hoje, a caça do peixe-boi na Amazônia é basicamente uma atividade cultural de subsistência - algo que normalmente seria considerado sustentável, se a espécie não tivesse sido tão maltratada pela caça predatória no passado.
"Dizemos que é uma atividade de subsistência porque não há intuito de comercialização, mas não porque eles precisam disso para sobreviver", explica Fábia. "Há muitas outras fontes de alimento nos rios e na floresta." Pelo método tradicional de caça, o animal é primeiro "fisgado" com um arpão e depois morto com dois tocos de madeira, que são enfiados como rolhas em suas narinas para asfixiá-lo. Um animal adulto pode pesar mais de 400 quilos.
POPULAÇÃO INCERTA
Quantos peixes-boi ainda restam na Amazônia ninguém sabe dizer. Mas a percepção é de uma população em declínio. Oficialmente, a espécie é classificada como "vulnerável", o que significa que corre risco de extinção a médio prazo na natureza. "Todos dizem que está muito mais difícil ver o peixe-boi, por isso sabemos que o número diminuiu bastante", diz Fábia. Desde 2000, o Projeto Peixe-Boi já percorreu os Rios Solimões, Negro, Purus, Madeira, Tapajós, Arapiuns e Amazonas, além de inúmeros tributários, igarapés e lagoas.
Mesmo sem uma estimativa populacional, já foi possível identificar algumas áreas de maior ocorrência da espécie, que podem servir de orientação para a criação de santuários e outras atividades de conservação. Por exemplo, o Lago Tefé (AM) e o Rio Trombetas (PA). Nas comunidades por onde passam, os biólogos também organizam trabalhos de educação ambiental, com materiais informativos, palestras e apresentações em escolas. A meta é conscientizar os ribeirinhos sobre a necessidade - tanto legal quanto ambiental - de preservar o peixe-boi.
A inibição da caça foi definida como prioridade máxima para conservação da espécie na última reunião do Grupo de Trabalho Especial de Mamíferos Aquáticos, que terminou anteontem em Itamaracá. Criado pelo Ibama em 1999, o grupo é formado por especialistas do governo, instituições de pesquisa e não-governamentais.
No encontro foi discutida a revisão do Plano de Ação para Mamíferos Aquáticos do Brasil, que determina diretrizes para conservação das 50 espécies que ocorrem no Brasil. Elas incluem baleias, golfinhos, botos, focas, lobos-marinhos, ariranha, lontra e duas espécies de peixe-boi: marinho e da Amazônia. O primeiro, que habita o litoral do Norte e Nordeste, está criticamente ameaçado, com apenas 500 indivíduos remanescentes.
"Precisamos recuperar o peixe-boi marinho e evitar que o peixe-boi amazônico chegue às condições que ele chegou", disse o diretor de Fauna e Recursos Pesqueiros do Ibama, Rômulo Mello. "O primeiro passo para isso é a educação ambiental. O segundo, a fiscalização."

Dos tanques vem o conhecimento
Inpa mantém 32 peixes-boi em cativeiro, quase todos ex-animais de estimação
A maior parte do que se sabe sobre o peixe-boi amazônico vem de pesquisas realizadas no Laboratório de Mamíferos Aquáticos (LMA) do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus. Inaugurado em 1974, o centro mantém 32 peixes-boi em cativeiro - quase todos resgatados da natureza ainda filhotes, em estado grave de desnutrição. "Eles geralmente chegam aqui muito debilitados, por isso a taxa de mortalidade é alta", diz o veterinário Anselmo dAffonseca, responsável pelo laboratório.
A equipe recebe entre cinco e dez peixes-boi por ano. Normalmente, os filhotes são órfãos de adultos mortos pelos ribeirinhos e que depois acabam sendo "adotados" como animais de estimação. Sem os cuidados adequados, entretanto, a maioria morre no cativeiro doméstico. Na última expedição do Projeto Peixe-Boi, os biólogos encontraram um filhote resgatado pelo Ibama de uma comunidade ribeirinha em Nhamundá (AM). O animal, debilitado, recebeu atendimento na embarcação, mas acabou morrendo antes que pudesse ser embarcado para Manaus.
A reprodução do peixe-boi amazônico é lenta: apenas um filhote a cada três anos ou mais. Apesar do nome, o animal é um mamífero. Totalmente herbívoro, ele nasce com 10 a 15 quilos e só deixa de mamar depois de dois anos. "O leite do peixe-boi tem características muito especiais", explica dAffonseca. "Sem uma dieta artificial muito boa, o animal dificilmente sobreviverá." Adultos podem pesar mais de 400 quilos.
Quatro filhotes saudáveis já nasceram por reprodução em cativeiro no Inpa desde 1998, mais um outro no Centro de Preservação e Proteção de Mamíferos Aquáticos de Balbina, que é mantido pela Eletronorte e cuida de outros 30 peixes-boi.
DEPENDÊNCIA
Os animais não são devolvidos a natureza, por causa da dificuldade que teriam para sobreviver. "Como todos chegam aqui filhotes, eles não sabem se alimentar sozinhos. Se a gente solta, eles morrem de fome", explica dAffonseca. E como não estão acostumados a ver o homem como inimigo, seriam alvos fáceis para os caçadores. "Mesmo que a gente fizesse a reintrodução em uma área protegida, os rios não possuem cercas. É muito provável que eles seriam caçados."
A solução, portanto, é mantê-los nos tanques do LMA e tentar aprender um pouco mais sobre eles. Segundo dAffonseca, mais de 90% do conhecimento científico sobre a espécie vem dos estudos em cativeiro do Inpa. Alguns experimentos já foram feitos na natureza com o uso de radiotransmissores, mas com sucesso limitado. O último filhote do Inpa (uma fêmea) nasceu no dia 6 de abril. Uma campanha foi criada para dar nome ao bicho pelo site www.inpa.gov.br.

OESP, 04/09/2005, p. A26

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