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O quilombo da Marambaia

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: LEROY, Jean Pierre
27 de Ago de 2007

O quilombo da Marambaia
O que se propõe é uma aliança entre os moradores e a Marinha

Jean Pierre Leroy

O caso envolvendo os quilombolas da Ilha da Marambaia e a Marinha do Brasil apresenta um conjunto de argumentos jurídicos e práticos que deveria abrir a visão da sociedade para considerar a hipótese de apoiar a luta dos quilombolas pela terra que tradicionalmente ocupam.

Primeiro, a própria Constituição, em seu Ato de Disposições Transitórias (art. 68), afirma que "aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitirlhes os títulos respectivos". Depois, o decreto presidencial no4.887, de 20 de novembro de 2003, define remanescentes de quilombo como "grupos étnicoraciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida". O mesmo decreto obriga o Incra a reconhecer, delimitar, demarcar e titular terras desses grupos.

No uso de suas atribuições conferidas pelo decreto citado, o Incra produziu um Relatório Técnico de Demarcação e Identificação que é o primeiro reconhecimento público oficial de que o território da Marambaia é quilombola. No dia 14 de agosto de 2006, o Incra publicou o relatório no Diário Oficial da União, mas, no dia seguinte, por pressão da Casa Civil, tornou sem efeito a publicação anterior. O efeito da publicação do relatório ainda está sub judice.

Anteriormente, em 12 de novembro de 2004, a Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura, emitiu uma Certidão de Auto-Reconhecimento em que se diz claramente que "a comunidade de Ilha de Marambaia (...) é remanescente das comunidades dos quilombos". Portanto, reconhecida está a identidade do grupo, e reconhecido está seu direito ao território.

É importante lembrar que, à auto-atribuição dos quilombolas da Marambaia, soma-se um relatório técnico científico elaborado pela Universidade Federal Fluminense, que deu base para a emissão da Certidão.

No entanto, a disputa continua. É normal, afinal o Estado brasileiro nunca foi célere no atendimento a direitos territoriais legítimos e estabelecidos.

O que surpreende mais é a miopia sobre a relação de cada ator - quilombolas e Marinha - com o meio ambiente. Acusam-se os quilombolas de pôr em risco o patrimônio natural da Marambaia, quando seu modo de vida inclui a pesca artesanal e roças de subsistência.

A Marinha, por sua vez, é acusada por eles de praticar exercícios militares com tanques, bombas em árvores e tiros no "costão", que é área de reprodução de espécies submarinas. Diante desse tipo de impacto, o roçado e a pesca artesanal dos quilombolas são na verdade um elemento conservacionista.

Por saber que a titulação definitiva da terra quilombola poderá demorar, e por ter consciência de que preservam a ilha, a Associação dos Remanescentes do Quilombo da Marambaia (Arqimar) propõe a criação de uma reserva extrativista (Resex). Inseridas no Sistema Nacional de Unidades de Conservação, as Resex definem limitações ao uso da terra e do mar. No Estado do Rio, já se tem em Arraial do Cabo uma Resex marinha, que vai mal por não ter sido suficientemente discutida com os pescadores locais, nem acompanhada de ações públicas que ajudassem na sua consolidação.

Na Marambaia, as chances são muito maiores. A iniciativa parte da comunidade local, que desenvolveu, no seu embate com a Marinha, a consciência das suas responsabilidades. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade/ Ibama e o secretário estadual de Meio Ambiente, Carlos Minc, acolheram favoravelmente o pleito. Enfim, os moradores poderiam contar com a Marinha. Na sua solicitação ao secretário, a Arqimar e seus apoiadores solicitam que ele "realize mediação com a Marinha do Brasil para que ela também se torne agente ativo da preservação do ambiente costeiro, da Mata Atlântica e do patrimônio histórico da ilha". O que se propõe é uma aliança entre os moradores e a Marinha em favor de uma Resex em que ambos - sociedade e corpo público - colaborem na sua concepção e na sua realização. Seria uma forma de atualizar a tradição da Marinha de dar assistência às populações pobres do litoral e dos rios amazônicos, num exemplo ímpar de democracia.

Quem pode ser contra isso? A meu ver, somente dois tipos de pessoas: ou aquelas movidas por um preconceito tão enraizado que ultrapassa toda lógica, ou as que verdadeiramente, até à revelia da própria Marinha, têm interesse numa possível abertura de partes da ilha, num futuro que esperam não tão distante, para iniciativas privadas ligadas à exploração predatória do turismo, como vem acontecendo principalmente na costa do Nordeste brasileiro.

Jean Pierre Leroy é coordenador de meio ambiente da organização não-governamental Fase - Solidariedade e Educação

O Globo, 27/08/2007, Opinião, p. 7

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