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O PIB é o avesso de uma medida de sustentabilidade

O Globo, Razão Social, p. 4-5
Autor: VEIGA, José Eli da
21 de Jul de 2009

"O PIB é o avesso de uma medida de sustentabilidade"
Comissão criada pelo presidente Sarkozy está reunida para criar nova medida de desempenho econômico

Entrevista / José Eli da Veiga

Amelia Gonzalez
amelia@oglobo.com.br

O Produto Interno Bruto (PIB) é um indicador de progresso usado por 185 países membros do FMI. Mas existe uma comissão, alavancada pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy, que está trabalhando, quase secretamente, para criar uma alternativa ao PIB. É que ficou claro que esta medida tem problemas, e não são poucos. Nela estão somados bens e serviços que são ou não benéficos para a sociedade, desde despesas com acidentes, poluição, criminalidade a investimentos em habitação, educação, saúde. E mais: não são computadas as depreciações de recursos naturais. O professor José Eli da Veiga, titular da Faculdade de Economia (FEA) e orientador do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, é um defensor desta comissão, também chamada de Comissão Sarkozy, e nesta entrevista esmiuça o trabalho de seus membros.

O Globo: O Produto Interno Bruto (PIB) é visto hoje como indicador de progresso. O senhor concorda com isso?

José Eli da Veiga: O PIB é uma adição de bens e serviços vendidos e comprados, sem qualquer distinção entre os que são ou não benéficos para a sociedade. Despesas com acidentes, poluição, contaminações tóxicas, criminalidade ou guerras são consideradas tão relevantes quanto investimentos em habitação, educação, saúde, transporte público. Nem sequer é computado trabalho doméstico que não seja feito por criadagem remunerada, por não envolver transações monetárias. Muito menos inclui depreciações de recursos naturais. Enfim, o PIB, hoje adotado pelos 185 países membros do FMI, só passa por indicador de progresso para quem nunca tenha visitado sua cozinha. E é o avesso daquilo que poderia ser uma medida de sustentabilidade, anseio que só começou a ser formulado recentemente, e em conjuntura das mais peculiares: a calmaria abortada pela explosão das Torres Gêmeas, que havia iniciado com o desmonte da Guerra Fria.

O Globo: Mas o PIB foi inventado para medir progresso?

José Eli da Veiga: Não, e isto pode ser dito em sua defesa, sempre. O PIB, na verdade, foi criado tão somente para medir o crescimento econômico, que é meio sem o qual não se atinge fins. Mas a armadilha não é desfeita, pois a ideia de riqueza que deu origem ao PIB foi excessivamente influenciada pela atmosfera da II Guerra Mundial. Os alertas iniciais sobre os perigos do PIB foram feitos justamente por um de seus principais criadores: Simon Kuznets (1901 1981), Nobel 1971. Perigos que só se confirmaram na segunda metade do século XX.

O Globo: Qual foi a atuação do presidente da França, Nicolas Sarkozy, no sentido de tentar rever este modelo de medição?

José Eli da Veiga: O presidente Sarkozy solicitou aos Nobel de economia Joseph Stiglitz e Amartya Sen para que propusessem alternativa ao PIB. Este gesto está ligado ao movimento desencadeado no final de 2004, em Palermo, por representantes de 43 países no fórum "Estatísticas, Conhecimento e Políticas". E aos três decorrentes conclaves protagonizados por parceria da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 2006 e 2007. O último: "Além do PIB: medindo progresso, verdadeira riqueza e o bem-estar das nações", que ocorreu em Bruxelas, pode ser lido no www.beyond-gdp.eu). Enfim, o presidente francês solicitou uma revisão dos "limites do PIB como critério de medida do desempenho econômico e do bem-estar". Ou melhor, da "mensuração do desempenho econômico e do progresso social", conforme acabou ficando o título oficial da forçatarefa que foi logo chamada de "Comissão Stiglitz" e está trabalhando nisso, um trabalho cercado de muito suspense.

O Globo: Quem faz parte desta comissão?

José Eli da Veiga: Este é um dos fatos que mostram que o processo está sendo bem encaminhado. A comissão se legitimou por contar com 25 outros craques (além de Stiglitz e Sen) de imenso prestígio, e com fecunda diversidade de visões e especialidades: Kenneth Arrow (Stanford), prêmio Nobel de 1972, está no topo, seguido por dois colegas que também foram ganhadores do Nobel em 2000 e 2002: James Heckman (Chicago) e o psicólogo Daniel Kahneman (Princeton). Há o jurista Cass Sunstein, o microeconomista Angus Deaton, o especialista em economia do trabalho Alan B. Krueger, o cientista político Robert Putnam, o economista ambiental Geoffrey Heal e a economista feminista Nancy Folbre. Entre os europeus, estão o célebre Nicholas Stern, o especialista em desigualdade e pobreza Anthony B. Atkinson e o expoente da chamada economia da felicidade Andrew J. Oswald; o presidente da OFCE (Centro de Pesquisas Econômicas da SciencesPo), Jean-Paul Fitoussi, o macroeconomista Philippe Weil e o politécnico Claude Henry, entre outros.

O Globo: Já há algum resultado de alguma reunião?

José Eli da Veiga: Sim, e este é um dos fatos promissores. No final de abril de 2008 houve a primeira reunião na qual foram discutidos dois estudos da produção científica pertinente. A comissão passou a ser organizada em três grupos de trabalho, cujo enunciado dos temas não poderia ser mais significativo: um para esmiuçar "os clássicos problemas do PIB", outro para focar "desenvolvimento sustentável e meio ambiente", e o terceiro concentrado na questão da "qualidade de vida". Além disso, outro sinal de que a Comissão está bem estruturada é que ela se empenhou em trabalhar com máxima transparência e buscar intenso diálogo público. Para tanto, ainda em julho de 2008, foi lançado um website para facilitar comunicação direta, além de disponibilizar documentos de trabalho: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr.

O Globo: O senhor pode adiantar o que pode ser encontrado nesse site?

José Eli da Veiga: Neste site pode ser encontrado, por exemplo, o documento que serviu de base à primeira reunião da CMDEPS (Comissão sobre a Mensuração do Desempenho Econômico e do Progresso Social). Em suas nove primeiras linhas, há uma síntese de todas as críticas já feitas ao PIB como medida de desempenho econômico, essencialmente por ela se restringir às atividades econômicas que envolvem transações monetárias. A partir da décima linha, o documento enfatiza que o maior impulso para a proliferação de novos índices ocorreu na virada para os anos 1990, quando simultaneamente brotaram as noções de "desenvolvimento humano", "desenvolvimento sustentável" e "pós-desenvolvimento".

O Globo: Existe já alguma proposta?

José Eli da Veiga: O segundo documento divulgado pela Comissão foi o rascunho das conclusões, em consulta pública desde o início de junho de 2009 (pode ser lido no www.stiglitzsenfitoussi.fr/documents/draft-summary.pdf).
Propõe cinco providências simultâneas: usar outros indicadores bem estabelecidos na contabilidade nacional; melhorar a aferição empírica de atividades-chave, como é o caso dos serviços de saúde e de educação; adotar a perspectiva domiciliar, mais pertinente para padrões de vida; adicionar informação sobre distribuição de renda e de riqueza aos dados sobre suas evoluções médias; e ampliar o escopo para incluir atividades que ocorrem fora dos mercados, por mais árduo que possa ser o trabalho de lhes imputar valores monetários.

O Globo: Seguir estes caminhos melhoraria a avaliação do desempenho econômico dos países?

José Eli da Veiga: Sim, mas quase nada diria sobre a qualidade de vida das populações. Para isso, a Comissão SSF se inclina pela inevitabilidade de oito critérios: saúde, educação, condições de trabalho e vida, influência política e governança, conexões sociais, condições ambientais, insegurança pessoal, com destaques para criminalidade, acidentes e desastres naturais e insegurança econômica, com destaques para desemprego, seguro-saúde, aposentadoria e pensões. E, como não é mais possível que a melhoria da qualidade de vida ignore seus limites ecológicos, a comissão apresentará em seu relatório final um enxuto painel integrado de indicadores capaz de avaliar o excesso de pressão sobre os recursos naturais.

O Globo: Qual o principal desafio desta Comissão?

José Eli da Veiga: Abrir caminho para que os problemas do PIB venham a ser superados por nova medida de desempenho econômico que não mais se restrinja a atividades mercantis nem ignore a sustentabilidade. Mas infelizmente não esclarece que está na precificação o calcanhar de Aquiles de todas as tentativas de se reformar o PIB. É duvidoso que as opções acima orientarão o processo que levará a razoáveis mensurações consorciadas do desenvolvimento e da sustentabilidade ambiental.
Mesmo assim, já são suficientes para que se constate a precariedade do PIB e do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), além de ressaltarem a ausência de algum indicador legitimado de sustentabilidade ambiental.

O Globo, 21/07/2009, Razão Social, p. 4-5

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