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O papel da índia não se resume a cuidar do lar

O Globo, Página 2, p. 2
Autor: KAMBEBA, Márcia Wayna
10 de Jul de 2017

'O papel da índia não se resume a cuidar do lar'

Márcia Wayna Kambeba, geógrafa Poeta, cantora e compositora amazonense veio ao Rio participar de evento que tem a poesia como tema

ENTRVISTA A: JACQUELINE COSTA jac@oglobo.com.br

"Pertenço à etnia Omágua Kambeba. Nasci numa aldeia Tikuna, no Alto Solimões, no Amazonas, onde minha avó era professora. Atualmente, moro no Pará. Faço poesias que falam sobre a identidade dos povos indígenas. Sou uma das 564 poetas presentes na exposição 'Poesia agora,' que fica em cartaz na Caixa Cultural até 6 de agosto."

Conte algo que não sei.
O meu trabalho é litero-musical. Faço composições em tupi e em português. Escrevo poesias que trazem um olhar ambiental, geográfico, indígena e cultural voltado para a valorização da cultura e da informação sobre os povos indígenas. Como vivem, onde vivem, como estão? E como querem ser conhecidos e compreendidos? Através da poesia, temos a chance de conversar e informar nosso leitor, não só o público adulto, mas também o infanto-juvenil. Atualmente, meus poemas estão em várias escolas. Também escrevo contos poéticos que rimam do início ao fim, com música no meio. Aposto muito na educação. Sou mestra em Geografia Cultural, a primeira do meu povo.

Como surgiu o interesse pelas histórias e pela poesia?
Isso vem desde muito cedo. Na nossa aldeia, minha avó ensinava às crianças. Ela ficou lá por 40 anos. Convivi com os Tikuna até quase os 9 anos e aprendi muito com eles. Eu me lembro de minha avó escrevendo poesias, compondo músicas, e ela acabou criando em mim essa referência cultural e de ativista. Minha avó exercia uma luta pela valorização do povo indígena e da mulher, funcionava como uma pajé. Vi muitas curas sendo feitas por ela com ervas da mata. Lembro de crescer debaixo da rede dela, que sempre fumava cachimbo. E de ouvir suas histórias sobre o boto Matinta. Na aldeia, ainda hoje procuramos manter essas referências para as crianças.

E a música, como surgiu na sua vida?
Tudo na aldeia é música. Para tudo nós cantamos. É uma forma de louvar... e de respeitar os momentos tristes. Tenho parceiros nessa caminhada. Um deles é o Edu Toledo, que compõe comigo. Faço as letras em tupi e ele dá a melodia. Juntos, temos parceria com Paulo Cesar Feital, Robertinho Silva e músicos estrangeiros.

Quais os desafios que você enfrentou para se formar e se destacar na aldeia?
Cursei Geografia na Universidade do Estado Amazonas. Terminei em 2006. Foi difícil porque no ano em que entrei na universidade minha avó morreu. Casei e comecei a trabalhar como locutora de rádio. A rádio me deu um apoio não só para que eu pudesse me manter, mas também recitar meus poemas.

Qual o maior preconceito sofrido pelos índios?
O primeiro é dizer que o indígena que vive na cidade não é mais indígena, que é descendente, que se descaracterizou. Não existe uma cara de índio, mas uma identidade, uma afirmação que nos torna pertencentes a um povo. O fato de usar cocar ou brinco não quer dizer que eu estou me fantasiando de índia, o que escuto muito por aí. As penas têm referências. O cocar representa o empoderamento da nação. Quando uso meu cocar em uma mesa de debates, levo nossa voz e nossa luta. E, assim abre-se um novo cenário, em que o papel da mulher indígena não se resume a cuidar do lar, da roça e dos filhos. Ela começa a entrar para a política e para as artes, entre outras coisas.

Que outras mudanças você percebe nas mulheres indígenas que vivem em aldeias?
Há mulher cacique, tuxaua (líder na aldeia) e aquelas que se formam em Direito ou em Arquitetura e as que fazem mestrado e doutorado. Precisamos de poder e do conhecimento para manter nossa resistência.

O Globo, 10/07/2017, Página 2, p. 2

https://oglobo.globo.com/sociedade/conte-algo-que-nao-sei/marcia-wayna-…

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