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O nó da crise do gás

O Globo, Economia, p. 29
11 de Nov de 2007

O nó da crise do gás
Especialistas e empresas alertam que desequilíbrio entre oferta e demanda vai até 2009

Gustavo Paul, Danielle Nogueira e Ramona Ordoïïez

O fantasma do desabastecimento de gás natural no Brasil ainda vai assombrar a população pelos próximos dois anos, pelo menos. Especialistas e empresários do setor alertam que, em 2008 e 2009, o país continuará convivendo com um déficit potencial de gás natural, em razão do desequilíbrio crônico entre oferta e demanda. Em outras palavras, não há gás para atender a todos.

O mercado só não entrou em colapso porque as usinas termelétricas a gás, criadas para evitar problemas de abastecimento, permanecem desligadas a maior parte do tempo. O problema ocorrerá quando elas forem acionadas para suprir a falta de energia gerada pelas usinas hidrelétricas. Foi justamente o que ocorreu no fim de outubro, causando problemas no Rio e tendo reflexos em São Paulo.

- Essa recente crise é como uma febre que passou, mas o vírus continua lá e pode voltar a qualquer momento. Esses problemas poderão se repetir nos próximos anos, até que a oferta de gás ultrapasse a demanda - afirma o analista Luiz Augusto Barroso, sócio da PSR Consultoria.

A descoberta recente na Bacia de Santos pela Petrobras não mudará esse cenário tão cedo. A expectativa é que a produção comercial só comece em, no mínimo, seis anos. Enquanto isso, os números do setor mostram a continuidade do problema. No segundo semestre deste ano, a oferta de gás no país foi de 55 milhões de metros cúbicos (m3) por dia, mas a demanda total - incluindo a das termelétricas - chegou a 59,2 milhões de m3. Esse descompasso veio à tona quando a Petrobras teve de fornecer o produto a usinas térmicas e, para isso, cortou parte do fornecimento para distribuidoras de Rio e São Paulo.

Em 2008, de acordo com estimativa feita pela consultoria Gas Energy, a oferta deverá bater em 69,7 milhões de m3, mas a demanda continuará mais alta: 72,5 milhões de m3. Em 2009, a oferta subirá para 77,6 milhões de m3, enquanto a demanda baterá em 81,2 milhões de m3. Contando com a promessa de importação do gás natural liquefeito (GNL), no segundo semestre de 2009 poderá haver equilíbrio entre demanda e oferta. Mas só em 2010 espera-se que a produção nacional, excluindo o GNL, e a importação da Bolívia ultrapassem a demanda. Naquele ano, conta-se com o início da produção comercial do insumo extraído das bacias do Espírito Santo e de Santos.

Investimentos em compasso de espera
O governo aposta na importação de GNL, a partir de 2008, para aumentar a oferta e dar garantias de fornecimento na próxima década.

Os especialistas no setor temem que a estatal tenha dificuldades em cumprir o cronograma, já que a procura pelo GNL também está aquecida no mercado internacional, o que dificultará fechamento de contratos.

- O setor elétrico não está tranqüilo, pois existem dificuldades para conseguir o GNL. O mundo está atrás do produto, o mercado ainda está concentrado na América do Norte, na Europa e na Ásia, e a América do Sul está entrando agora nesse circuito - diz Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, que reúne investidores privados do setor elétrico.

Além disso, o GNL tende a ser mais caro que o gás natural. Dificilmente a Petrobras conseguirá fechar contratos de longo prazo nos próximos dois anos. Pelos cálculos do economista Edmar de Almeida, do Grupo de Energia da UFRJ, esse é o tempo para que grandes volumes de GNL voltem a estar disponíveis para suprimento de longo prazo. Logo, a estatal terá que comprá-lo no mercado spot (à vista), em que o preço é alto.
- Ou a Petrobras renegocia os contratos com as distribuidoras ou terá que arcar com a diferença de preços - afirma Almeida.

Nesse cenário, a oferta de gás para energia, indústria e carros será medida na ponta do lápis e vai depender do crescimento da economia e do regime de chuvas. Se chover menos ou se a economia crescer mais, poderá desequilibrar o sistema.

- A crise não surgiu agora, já estava prevista desde 2005, quando ficou claro que o consumo estava aumentando mais que a produção e a importação - diz Marco Tavares, da Gas Energy.
Para ele, houve um erro grave de planejamento, quando, em 2003, a Petrobras procurou aumentar o consumo interno, congelando o preço e incentivando as empresas a trocarem suas plantas industriais para o uso do gás. O consultor independente Roberto Araújo lembra que a estatal teve de fazer isso porque, até então, havia sobra do insumo. Pagava-se pelo gás boliviano mesmo que este não fosse consumido, conforme contrato firmado na gestão de Fernando Henrique Cardoso.

Petrobras: corrida para acelerar obras
Araújo recorda ainda que, logo após o racionamento, a demanda por energia se manteve em níveis mais baixos que o registrado antes do apagão de 1999, levando a uma momentânea sobra de energia e conseqüente queda de preço.

- Isso fez com que alguns consumidores se aproveitassem dessa situação. Eles preferiram comprar energia no mercado livre, que não exige contratos de longo prazo, dificultando o planejamento - diz.

Sem garantias de fornecimento, a indústria está preocupada. O setor de produção de vidro, que tem 100% das fábricas funcionando à base de gás, está de olho no que chama de "problemão". Vários investimentos estão em compasso de espera.

- É certo que vai faltar gás no futuro, caso seja preciso gerar energia com ele - diz Lucien Belmonte, superintendente da Abividro, a associação do setor.

As empresas do setor de cerâmica, também dependentes do gás, querem medidas urgentes, para garantir o fornecimento para as 94 empresas que empregam 250 mil pessoas. Uma delas é reduzir drasticamente o uso do gás veicular e para geração de energia.
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Esse é um filme de terror que se arrasta há anos. Para gerar energia e mover carros, já existem outras fontes de combustível. Para nosso setor não há opção - diz Antônio Carlos Kieling, diretor da Anfacer, que reúne empresas do segmento.

A Petrobras reconhece que a oferta de gás natural está no limite do atendimento do consumo, e corre contra o tempo para aumentá-la.

Desde o ano passado, a empresa iniciou diversas obras do Plangás, que prevê aumentar a oferta de gás na Região Sudeste dos atuais 15,8 milhões de m3 por dia para 40 milhões em 2008. Em 2010 a previsão é que a oferta na região chegue a 55 milhões de m3 diários.

Só um terço da energia alternativa saiu do papel
Problemas de licenciamento ambiental e demandas judiciais atrasam projetos

São poucas as alternativas às usinas a gás natural para aumentar a oferta de energia a curto ou médio prazo no país. Dos 3,3 mil MW do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) previstos originalmente para 2006, por exemplo, apenas 997,1 MW (30%) saíram do papel, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A previsão da agência é que mais 299 MW estejam operando comercialmente este ano e outros 1.939 MW, em 2008. Os 158 MW restantes estão sem previsão devido a problemas de licenciamento ambiental ou demandas judiciais.

- Ainda que boa parte dos empreendimentos de energia alternativa restantes entrem em operação em 2008, eles não ajudam muito porque não conseguem operar o ano todo. A eólica, por exemplo, só opera quando tem vento - diz o economista Edmar de Almeida, do Grupo de Energia da UFRJ.

As usinas térmicas a óleo combustível ou a diesel seriam uma opção, uma vez que também são fontes térmicas, contribuindo para a segurança do abastecimento em caso de falta de chuvas. Mas esbarram no preço mais elevado que o do gás natural, além de questões ambientais. O custo da geração de energia com o diesel é pelo menos o dobro do valor da opção a gás natural, segundo o economista.

As hidrelétricas e a energia nuclear também enfrentam problemas. Dos 6.996 MW de usinas hidrelétricas cujas obras estão em andamento, 2.402 MW não têm previsão de operação por dificuldades de licenciamento ambiental, demandas judiciais ou rescisão de contratos. Já a energia nuclear esbarra em problema de tempo. Angra 3 só estará pronta em 2013, na melhor das hipóteses. Por isso, o consultor independente Roberto Araújo enfatiza a necessidade de se investir em eficiência energética.
(Danielle Nogueira)

O Globo, 11/11/2007, Economia, p. 29

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