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O ministro da floresta

CB, Brasil, p. 8
Autor: UNGER, Roberto Mangabeira
28 de Jan de 2008

O ministro da floresta
Para o novo secretário, a soberania na Amazônia depende da solução das questões fundiárias na região

Entrevista: Roberto Mangabeira Unger

Leonel Rocha
Da Equipe do Correio

Entre os sete e os 11 anos, o ministro Roberto Mangabeira Unger passou parte das férias escolares ouvindo discursos de personagens como Roberto Simonsen, Prado Kelly, o brigadeiro Eduardo Gomes e seu próprio avô, o ex-governador baiano Otávio Mangabeira. O cenário era o antigo Palácio Monroe, no Rio de Janeiro, onde funcionava o Senado. O menino morava com os pais nos Estados Unidos, não tinha amigos da sua idade por perto e esse passou a ser o seu divertimento. Com a morte do pai, voltou com a mãe ao Brasil para estudar o segundo grau e cursar a faculdade de direito. Um dia depois de concluir o curso, voltou a viver nos EUA até virar ministro. Nunca perdeu o sotaque norte-americano adquirido na infância, o que lhe dá o ar caricato de turista ianque. Depois de classificar o primeiro governo do presidente Lula de "o mais corrupto da história da República" e pedir impeachment, Mangabeira Unger, 60 anos, casado, quatro filhos, professor da tradicional Universidade de Harvard, aceitou dirigir a Secretaria Extraordinária de Planejamento de Longo Prazo no segundo governo petista.

Assume propondo uma campanha de mobilização política da sociedade brasileira (governos incluídos) por uma moderna integração da região à economia nacional. "A Amazônia é uma causa nacional, nosso grande laboratório, onde precisamos construir políticas e instituições que terão relevância no restante do país. Só reafirmando a nossa soberania na região é que serviremos à humanidade", defende. Há duas semanas, ele levou uma comitiva de 38 pessoas de vários ministérios para uma visita de quatro dias a pontos estratégicos da região Norte. Lá, divulgou o esboço de um projeto que prevê, entre outras coisas, o zoneamento econômico ecológico da região, o financiamento público de empreendimentos científicos, a criação de novos sistemas de irrigação e até a inusitada construção de aquedutos para transpor água "inútil" da Amazônia para o semi-árido nordestino. Suas idéias polêmicas foram bombardeadas dentro e fora do governo. Antes de viajar à França e à Rússia com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, para tratar do reequipamento das Forças Armadas, Mangabeira, o ministro do futuro remoto brasileiro, recebeu o Correio para uma entrevista.

O senhor está em campanha pela Amazônia?

Sim. A campanha deve ser da nação e não só dos governos. A Amazônia não deve ser vista como uma causa regional. A floresta é o nosso grande laboratório, o lugar onde precisamos construir políticas e instituições que terão relevância no resto do país. A Amazônia é a vanguarda. Todo o eixo do projeto e o ponto de partida é o zoneamento econômico ecológico, baseado na solução das questões fundiárias, que permitirá uma definição de estratégias econômicas distintas para diferentes partes da região. Esse trabalho não substitui o Plano Amazônia Sustentável. Também temos o PAC, que organiza grandes obras de infra-estrutura na região. E ainda temos a problemática do complexo industrial urbano. Meu trabalho é combinar todos esses elementos e colocá-los dentro de uma visão estratégica para o país. Para que isso funcione, a nação toda precisa abraçar a causa. E não pode ser o pleito de um lobby, de um setor ou de um lugar. Precisa ser construída como uma causa que comova e esclareça o país.

O senhor teme a expressão "internacionalização da Amazônia"?

Sem dúvida. Uma das premissas desse projeto é a reafirmação inequívoca de nossa soberania na região. Só assim serviremos à humanidade. Mas qualquer estratégia de defesa na Amazônia será precária se não estiver fundada em um projeto econômico consistente. Lá não pode ser apenas um santuário, um parque. Mas também não pode ser entregue às formas devastadoras da produção. Hoje, a maior vilã do desmatamento na Amazônia é a pecuária extensiva. Esse é um problema do país todo. Para enfrentá-lo, temos que ter uma estratégia para a parte já desmatada da floresta, outra para a Amazônia verde e uma terceira para as áreas urbanas. Na Amazônia já desmatada, teremos oportunidade de construir um modelo econômico que associe o Estado aos pequenos produtores, vinculando diretamente as formas mais atrasadas e as mais avançadas da produção. Nós teríamos que substituir a pecuária extensiva em alguns lugares por pecuária intensiva, combinada com a agricultura avançada, porém de padrão familiar. E também a produção de biodiesel com o dendê, por exemplo. Em outros lugares, poderemos ter o replantio de árvores ou lavouras perenes. É uma grande tarefa econômica, que só vai prosperar dentro de um novo modelo institucional. Na Amazônia florestada, o objetivo é dar conseqüência prática à idéia do manejo controlado e sustentável na floresta.

Como operacionalizar tudo isso?
Eu vejo dois grandes requisitos: um nacional e outro internacional. O nacional é construir um regime regulatório e tributário que faça a floresta em pé valer mais que ela derrubada. O requisito internacional é aproveitar e desenvolver mecanismos que ajudem o mundo todo a compartilhar o custo de iniciativas que vão beneficiar todo ele, mas que nós, brasileiros, teríamos que pagar. O Brasil terá que tomar iniciativas para resguardar a Amazônia e, ao mesmo tempo, desenvolvê-la. E essas iniciativas vão ter o que os economistas chamam de externalidades positivas. Nós precisamos compartilhar rápido esse custo com o mundo.

A proposta, na prática, não é a internacionalização?

Nada. Pelo contrário. Tem como premissa a reafirmação de nossa soberania. Primeiro, temos que desenvolver tecnologia apropriada para o manejo de florestas tropicais, coisa que não há no mundo. Segundo, temos que organizar a prestação de serviços ambientais. E terceiro, ordenar juridicamente a gestão comunitária das florestas para que nós tenhamos uma alternativa ao controle das matas pelo Estado, de um lado, ou a entrega das florestas a grandes empresas, de outro.

É quase uma nova Constituição para a Amazônia...

É um novo ordenamento jurídico, um exemplo desse experimentalismo institucional necessário para resolver os problemas práticos. Não é por uma idiossincrasia ideológica. É que temos uma agenda de programas e não conseguiremos resolver esses problemas dentro do estreito repertório das funções disponíveis. Também temos a Amazônia urbana. As duas grandes atividades econômicas, hoje, na região não têm nada a ver com floresta. São a Zona Franca de Manaus e a mineração no Pará. O grande avanço seria combinar essa atividade industrial urbana com a problemática verde. De um lado, desenvolver indústrias que aproveitem os produtos florestais, fitoterápicos, fitocosméticos, alimentos, corantes, além da madeira. De outro, indústrias que produzam tecnologia para o manejo controlado e sustentável da floresta. Outro exemplo é o transporte. Na Amazônia não dá para continuar esse modelo rodoviário absurdo. Teremos que construir um paradigma de sistemas multimodais.

São problemas tão grandes e polêmicos que é quase um movimento político o que o senhor propõe.

Sim. E novamente isso ilustra o método que eu estou seguindo em todas as áreas do meu trabalho, que é entender a necessidade de ajudar a formular um projeto de Estado com potencial de sobreviver ao governo, de ter vida mais longa que o ciclo eleitoral. E para isso, é preciso trabalhar não só com todas as forças políticas e com estados federados, mas também construir uma movimentação de idéias, emoções e atitudes.

Na sua proposta, tudo depende de um Estado forte, financiamento público pesado, dirigismo empresarial…

Mas diferente. Nos últimos dois séculos, o eixo do debate ideológico no mundo foi o Estado contra o mercado. O estatismo contra o privativo, no modelo liberal. Mas esse ordenamento do debate ideológico tem cada vez menos sentido. Começa a ser substituído por um outro eixo, que é o conflito e a controvérsia sobre as formas institucionais alternativas da economia de mercado, da democracia política e da sociedade civil livre. As formas institucionais existentes nos países ricos, que tomamos como referência, são apenas um segmento de um universo muito mais amplo de possibilidades institucionais. Um exemplo é a associação entre o Estado e pequenos produtores para a Amazônia já desmatada. É a tentativa de usar o poder do Estado para estimular as cadeias produtivas entre empreendimentos de vanguarda e de retaguarda. Isso aí não é apenas a regulação, mas a reconstrução da economia. O Estado não atua para suprimir o mercado, nem para regulá-lo ou para contrabalançar as desigualdades com políticas compensatórias, mas para criar mercados e reinventar fórmulas institucionais. Não estamos acostumados a isso no Brasil porque, para pensar dessa forma, teremos que andar na vanguarda do mundo, coisa que nunca fizemos. Nós estamos acostumados a obedecer, imitar e importar fórmulas.

Mas o senhor não está erguendo uma muralha intransponível tentando articular o grande capitalista da pecuária extensiva com a agricultura familiar?

Não. O coração do sistema industrial brasileiro, construído no Sudeste em meados do século 20, é o que os especialistas chamam de fordismo, produção e oferta de bens e serviços padronizados em grande escala e relações de trabalho hierárquicas e especializadas. Esse estilo de produção se mantém competitivo à base da baixa remuneração no trabalho. Nós não teremos futuro como uma China com menos gente. Hoje, estamos ameaçados de ficar imprensados entre economias de trabalho barato e as de produtividade elevada. Nosso interesse nacional é escapar dessa crença pelo lado alto da valorização do trabalho e da elevada produtividade. Para isso, precisamos fazer duas travessias ao mesmo tempo: acelerar nas nossas grandes indústrias a travessia do fordismo industrial já tardio para a produção de alto conhecimento, mais flexível. E também temos que encontrar meios de equipar - não só com tecnologias, mas com práticas de conhecimentos - os milhares de pequenos empreendimentos pré-fordistas emergentes, para que eles possam passar ao pós-fordismo sem ter que viver a etapa intermediária da tradição industrial. E uma das maneiras de fazer isso é estimular o surgimento de cadeias produtivas em que empreendimentos muito avançados produzam, de maneira não padronizada, bens e máquinas para serem assimilados por empreendimentos menos avançados.

Ministro, entre as suas idéias há a polêmica proposta de transposição de águas da Amazônia para o semi-árido nordestino.

A Amazônia é região do mundo onde há mais água e, paradoxalmente, os habitantes de lá não têm acesso como deveriam. Então, com tecnologia já existente, uma das muitas tarefas de um projeto na região é assegurar o fornecimento de água para os que são de lá. Agora, é improvável que seja eficiente, hoje, transportar água para outras áreas com a tecnologia disponível. Numa outra etapa histórica, com tecnologia ainda a criar, a Amazônia poderá ajudar a resolver o problema da água na região vizinha, o semi-árido nordestino.

CB, 28/01/2008, Brasil, p. 8

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