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O milagre da mata atlântica

FSP, Mais, p. 3
Autor: LEITE, Marcelo
07 de Jan de 2007

O milagre da mata atlântica
"Regeneração da floresta" é dádiva para os ímpios desconfiarem

Marcelo Leite

S abiá-do-campo, tesourinha, canário-da-terra, bem-te-vi, quero-quero, gralha-azul, curicaca, pica-pau-do-campo, andorinha, anu-branco... Bastam poucos dias na serra catarinense para topar com dezenas de espécies de pássaros. A maioria, porém, inidentificáveis por urbanóides desprovidos de um guia de aves.
Não tem problema. Nem sempre é imprescindível saber o nome para conhecer. Quando alguém dispõe de muitas horas para caminhar entre milhares de araucárias com galhos cobertos de liquens, um par de binóculos é mais que suficiente. Se a ansiedade classificatória bater, um mergulho no rio Canoas resolve. Esfria a cabeça de qualquer um. Na água, dificilmente será necessário um giro de 360 graus para dar com uma bromélia em flor encarrapitada numa araucária qualquer.
Eis o verdadeiro milagre da mata atlântica -no caso, a mista. Também chamada de mata de araucárias, ou "mata negra" (pelo contraste do sombrio pinheiro brasileiro contra o fundo das outras árvores), a floresta catarinense encanta. Compensa, com sobras, todos os suplícios rodoviários para alcançar Urubici (SC). E, depois, para cobrir os 30 km de terra e pedras soltas até o refúgio de Gisele e Juan no sopé da serra do Corvo Branco. Quem sabe, mesmo, arrastar-se entre bambus até a borda escarpada, basalto sobre arenito vermelho, no primeiro dia do ano. Campos de altitude, horizontes e luz. Feliz 2007.
De volta à pousada na beira do Canoas, dá até para pensar em ler alguma coisa. Como as notícias de 12 dias antes, no crepúsculo do primeiro governo Lula, sobre a finalização dos levantamentos e remanescentes florestais nos seis biomas brasileiros: mata atlântica, Amazônia, cerrado, caatinga, Pantanal e Pampa. Nada de muito novo, além do "tour-de-force". Pantanal e Amazônia ainda são os biomas mais preservados. Mantêm 88,7% e 85%, respectivamente, da cobertura vegetal nativa preservada. A devastação do Pampa (58,7% detonados), do cerrado (38,9%) e da caatinga (37,4%) ganha, enfim, números oficiais. Cifras menos horrendas que a de estimativas anteriores, menos abrangentes e generosas nos critérios.
Por encomenda do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a vegetação secundária (matas rebrotadas) em estágio avançado foi agora computada como remanescente florestal. O emprego desse critério compõe também a explicação oficial para a grande surpresa do levantamento: segundo o mapeamento coordenado por Carla Madureira Cruz (UFRJ), Raúl Sánchez Vicens (UFF) e Marcelo Araújo do Iesb (Instituto de Estudos Socioambientais do Sul da Bahia), 27,4% da mata atlântica estão de pé.
Se for aceito como fato, é outro milagre. Até o presente, o número mais citado despencava a um quarto disso. Segundo o "Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica", da Fundação SOS Mata Atlântica (2006), restam cerca de 7% da floresta ombrófila (chuvosa) densa que portugueses e outros europeus encontraram e dizimaram na costa brasileira. Além do conceito de remanescentes adotado, os autores do trabalho encomendado pelo MMA explicam a discrepância também pelo uso de escalas de mapeamento diversas e pela inclusão de manchas florestadas de cerrado e caatinga. Ainda assim, a diferença entre os números dá o que pensar.
Sair de 2006 com 93% de mata atlântica devastados e entrar em 2007 com quase um terço florestado constitui dádiva bastante para até os ímpios desconfiarem, além dos santos. Que o digam os especialistas.

Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático "Pantanal, Mosaico das Águas" (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br

FSP, 07/01/2007, Mais, p. 3

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