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O marco zero da história

Gazeta Mercantil-SP
Autor: Alessandra Simões
31 de Ago de 2001

Diante da estimativa de que há apenas cerca de 250 mil índios no Brasil, descobertas arqueológicas parecem formar uma espécie de núcleo de resistência para que não se perca a memória de nossa história pré-colonial. Grande parte desses estudos chega agora ao público por meio da mostra 'Brasil 50 mil Anos — uma Viagem ao Passado Pré-Colonial', uma das maiores exposições já realizadas sobre o tema. A mostra — que começa nesta terça-feira (dia 4), no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília — promete fazer uma revisão da história da ocupação do território brasileiro antes da chegada dos europeus.

'Queremos repensar a história do Brasil. Recuar o marco zero dessa história. Queremos mostrar que somos uma civilização milenar e que não devemos estar presos ao passado colonial', afirma Paula Montero, diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), e coordenadora do megaevento, que tem previsão de entrar em cartaz na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, e no Centro Dragão do Mar, em Fortaleza.

Segundo Paula, não se trata de fazer uma apologia simplória da necessidade de recontar a história brasileira. Para ela, o objetivo é fazer uma reavaliação consistente baseada em pesquisas que serão apresentadas por meio de mil peças do acervo do MAE e do amplo trabalho da equipe de arqueólogos, museólogos e especialistas em difusão científica e prática educativa envolvidos durante dois anos na elaboração do projeto. O objetivo é contar — em 2 mil metros quadrados do Salão dos Espelhos, espaço projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer — a ocupação de diferentes regiões do país, como as áreas de cerrado, dunas do litoral, florestas e planaltos do sul do Brasil, regiões de Mata Atlântica e amazônicas e planalto central. A mostra é dividida em quatro módulos: os caçadores-coletores e povos dos sambaquis; a expansão tupi-guarani; as grandes aldeias do planalto; e o esplendor amazônico. Este último, que promete ser uma 'viagem mítica' pela Amazônia, terá um dos maiores aparatos cenográficos da mostra.

O primeiro módulo trata das mais antigas culturas do território brasileiro, cuja origem data de cerca de 40 mil anos atrás. A economia desses povos, baseada em grande variedade de caça e pesca, e coleta de produtos silvestres, como mel, frutos e palmito, revela como havia caçadores de grande mobilidade, vivendo em um clima muito mais frio do que o de hoje, e entre muitos animais já extintos. Nesta parte da exposição, é possível atestar como, com o passar do tempo, essas sociedades foram se transformando em organizações sociais mais complexas. O módulo termina com os sambaquis, terminologia tupi que significa monte de conchas. São sítios compostos por conchas de diversos moluscos espalhados por todo o litoral brasileiro e, principalmente, em torno de enseadas e lagos.

Pesquisas recentes apontam para algumas populações de grande porte que habitavam as áreas próximas aos sambaquis. Estudos mostram, por exemplo, a existência de epidemias entre seus membros, o que só ocorre em adensamentos populacionais grandes e não em bandos nômades. Nos sambaquis também foram encontradas peças de rituais funerários ricamente esculpidas, com formas estéticas sofisticadas. Há também estudos que apontam para sambaquis não apenas como acúmulos de restos de comidas, mas como estruturas monumentais de poder simbólico e político. Para isso, supõe-se que deveriam ser necessárias forças extras de grupos externos, revelando a complexidade de regras políticas, religiosas e sociais.

Os dois módulos seguintes tratam da expansão tupi-guarani e das grandes aldeias circulares do planalto central, que englobam as sociedades agricultoras e que tiveram contato com os colonizadores europeus. É interessante como a pesquisadora Erika Robrahn-Gonzáles apresenta no catálogo da exposição o mito de Maíra. Repetido por várias tribos brasileiras, ele seria símbolo da maior ocupação ocorrida no Brasil pré-colonial: a expansão dos índios tupis. Segundo a história contada entre gerações, Maíra, 'deus encarnado das forças da natureza', criou o mundo, os animais e os homens. Estes últimos foram expulsos dos domínios míticos por causa de sua indolência. Arrependidos, iniciaram um grande movimento de expansão pela terra para tentar recuperar a imortalidade.

Erika mostra como esse mito representa a expansão e o impacto da cultura das sociedades tupis em grande parte do território brasileiro, chegando no século XVI a milhões de pessoas. Anos atrás, em algum ponto da Amazônia central, próximo ao vale do rio Madeira. Por volta de 2,5 mil anos depois surgiram os povos tupis-guaranis, herdeiros dos grupos amazônicos mais antigos, dos quais aprenderam o requinte tecnológico e estilístico. Eles partiram, então, para o resto do Brasil, redesenhando o quadro de ocupações humanas no país, que já tinha outros grupos indígenas, e de partes do Peru, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai. A herança na culinária brasileira pode ser atestada neste módulo por meio dos costumes dos falantes do tronco tupi, que reúne 39 línguas. O grupo cultivava mandioca doce (aipim) e amarga (brava), milho, batata doce, algodão, feijão, amendoim, abacaxi, abóbora e tabaco.

Entre os objetos arqueológicos, há inúmeros exemplares resultantes do contato tupi com outros grupos. Na região do planalto central, foram estabelecidos diversos contatos por meio da troca de objetos e informações. Vasilhas tupis são freqüentemente encontradas em meio às aldeias do planalto central. No litoral sul-sudeste brasileiro também foram achados objetos em prata e cobre, descritos pelos primeiros viajantes europeus no século XVI. De origem andina, eles indicam a extensão do acesso tupi às terras altas da América do Sul.

O principal vestígio encontrado nas aldeias e que estará na exposição é a cerâmica. Vasilhas de diversas formas — entre jarros, abertas, semiglobulares — eram feitas a partir da técnica de roletes, em que tiras arredondadas de barro eram unidas uma a uma até formar toda a peça. Também eram misturados grãos de cerâmica moída para dar mais consistência à massa, que depois era queimada a céu aberto.

Os sítios ao norte de São Paulo, e que se estendem do litoral até o Maranhão, apresentam peças inteiramente pintadas. Nelas, há diversos motivos geométricos formados por linhas, curvas e pontos em cor vermelha ou preta. Também formam traços, círculos, ondas ou ziguezagues, numa grande variedade de tramas. Já nos sítios da região sul, a decoração predominante se dá em texturas sobre a superfície, feitas com as mãos ou com instrumentos. Curiosamente, 50 a 80% das peças achadas nas escavações têm estilo simples, sem decoração. Eram usadas para atividades cotidianas, enquanto as peças decoradas eram dirigidas a festas e cerimoniais.

Já os estudos sobre as aldeias circulares no Brasil central revelam a complexidade dessas sociedades como realizadoras do primeiro movimento aglutinador e centralizador. As casas, dispostas em círculos, estabeleciam a convivência em espaços comuns. Entre eles, a praça central e o local de sepultamento. Ao contrário da versão simplificada de estudos que induziam a uma espécie de homogeneização social, descobertas recentes revelam que havia complexidade na organização social desses índios, por meio de suas diferenças sociais, culturais, sexuais, políticas e simbólicas. Em determinado sítio, por exemplo, a presença da cerâmica mostrou que a divisão da aldeia se baseava em atividades econômicas, cerimoniais e de outras naturezas. São dados que apontam para o novo caminho da arqueologia brasileira e à reconstrução de uma memória milenar

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