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O lado feio de Campos do Jordao

OESP, Metropole, p.C1, C3-C4
17 de Jul de 2005

O lado feio de Campos do Jordão
Na cidade chique que movimenta R$ 500 milhões na temporada de inverno, falta saneamento e população vive em encostas
Rosa Bastos
Mal se atravessa o portal de acesso à cidade, a pobreza de Campos do Jordão salta aos olhos. Está bem ali, nos casebres perigosamente pendurados nos barrancos. Na cidade que recebe 1,2 milhão de pessoas e movimenta R$ 500 milhões na temporada de inverno, cerca de 30% dos 55 mil habitantes vivem em encostas, muitos em situação de risco. Nos últimos anos, Campos do Jordão viu a população de suas favelas dobrar, sobrecarregando a infra-estrutura da cidade.
"O eixo central é muito bonito. Capivari, então, um tapete. Vai olhar atrás do morro", diz Alzira Rosa de Godoy, de 58 anos, jordanense legítima, 4 filhos e 10 netos, tesoureira do Conselho Municipal das Associações de Moradores, que reúne 42 dessas sociedades que têm por costume atazanar a vida dos prefeitos. Nos 40 anos em que foi caseira, muitas vezes trabalhou até tarde, porque os patrões estavam recebendo amigos. Depois que o marido morreu, voltou para a Vila Nadir, na periferia, e socorre pessoas em situação mais difícil que a dela.
"As pessoas vêm na ilusão de que Campos do Jordão é um lugar de ganhar dinheiro. Quando chegam, não é nada disso", diz Alzira. "E aí, sem ter onde morar, invadem área de risco e propriedade particular." Tioni José de Melo, presidente do conselho de moradores, conta que o inchaço se deu quando os empreendedores começaram a construir hotéis e casas de luxo. Enquanto durava a obra, os operários ficavam no alojamento. Depois, tinham de morar em algum lugar. "Onde? Nas encostas." Ou no plano, mas sempre em situação de risco: apenas uma cerca viva separa barracos dos gramados do Grande Hotel, um dos mais caros, com diárias superiores a R$ 1 mil. O esgoto, é claro, corre para o rio, que fica logo ali.
À população fixa somam-se estimados 32 mil - aqueles que ficam nas 8 mil casas ocupadas por turistas nos fins de semana -, mais os 350 mil que se hospedam em hotéis, além dos que só passam o dia. Juntando tudo, são mais de 400 mil pessoas a cada fim de semana de julho. Exceto nos condomínios, não existe serviço público de tratamento de esgoto. Então, todos os dejetos são lançados no Rio Capivari. "O problema do saneamento é grave", admite o secretário do Meio Ambiente, Ricardo Veraldi Ismael. Ele confirma que o crescimento desordenado se deu com a explosão da construção civil.
Segundo o secretário, cerca de 30% da população fixa vive em condições precárias e, desses, de 10% a 15% em condições extremamente impróprias. De acordo com Melo, 80% dos que conseguem trabalho na temporada são de fora, contratados para os eventos. "Os jordanenses ficam com a limpeza."
A dona de casa Eunice Maria dos Santos, mineira, 26 anos de Campos e 44 de idade, resume: "A vista daqui pra lá é bonita. Já de lá pra cá!" Da varanda da casa, num barranco no morro Britador, ela vê Capivari, lá embaixo. O marido é jardineiro, "faz de tudo um pouquinho". Eunice só desce o morro para ir à missa. Em Capivari, não bota os pés. "Tenho vergonha, sabe?"

Moradia e esgoto são problema
Há 3 mil imóveis irregulares e 600 em situação de risco; projetos são incipientes
O governo do Estado se comprometeu a iniciar a estação de tratamento de esgotos de Campos do Jordão a partir de 2006. Feito isso, vai-se atacar a questão habitacional. É o que diz o secretário do Meio Ambiente, o engenheiro Rodrigo Ismael. Segundo ele, o saneamento básico é o problema crucial da cidade, já que os esgotos vão direto para o Rio Capivari.
Há dois projetos em andamento. Um da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) prevê a construção de 600 casas populares. O outro é do Ministério das Cidades.
Com ajuda do Greenpeace, a prefeitura está retirando o lixo do rio de águas lodosas, que atravessa Campos e pode ser visto de graciosas pontes de madeira, com margens floridas. "Do ponto de vista ambiental, o efeito não é tão nefasto porque as águas sempre se renovam, mas isso traz um estigma para a cidade", diz Ismael.
Para a geógrafa Lina Maria Aché, diretora de planejamento ambiental estratégico da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, a prioridade é melhorar a qualidade urbana e ambiental prejudicada pela expansão desordenada da cidade.
"Grandes empreendimentos trazem as pessoas que vão prestar serviços na fase de construção e depois. Ou seja, não se pode pensar em Campos e simplesmente ignorar as pessoas que ajudam a manter sua estrutura", diz Lina.
O problema habitacional é tão grave quanto antigo. De acordo com um levantamento do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), há 600 casas em situação de risco e mais de 3 mil imóveis irregulares. "É preciso retirar as pessoas, um problema que não se resolve de uma hora para outra."
Segundo ela, existe um consenso de que a cidade chegou à saturação. O trânsito, por exemplo, não anda. Estudos vêm sendo feitos para refazer o plano diretor da cidade e elaborar um plano de manejo. Tudo isso, porém, tem de ser feito em conjunto com os municípios vizinhos, São Bento do Sapucaí e Santo Antonio do Pinhal. Com os reflexos da expansão de Campos, as duas cidades estão crescendo também. Muita gente que não consegue vaga em hotéis de Campos se hospeda em São Bento e Santo Antonio. Rosa Bastos

Passada a chuva, pessoas voltam para áreas de risco
As lembranças das chuvas de janeiro de 2000 - que provocaram deslizamentos de terra com um saldo de 10 mortos, 3 mil desabrigados e 628 moradias destruídas em Campos do Jordão - continuam na memória dos moradores da cidade. Porém, cada vez mais esmaecidas. A tal ponto que Eunice Maria dos Santos, de 44 anos, fez uma troca com um vizinho. Ele ficaria com a casa dela, no Acampamento dos Pumas, e ela se mudaria para a casa dele, no alto do Britador.
E lá está ela, com o marido e o filho, de 11 anos. "Ele foi pra lá e nós pra cá, sem papel, sem nada. Tudo é área verde mesmo. Não tem escritura, não tem muito valor." Eunice não vê problema em morar na beira da ribanceira. E tem uma explicação para o maior evento geológico dos últimos cem anos na região da Serra da Mantiqueira. "Sabe por que rodou? Não sei se passou um avião, só sei que se ouviu um estrondo que balançou tudo e deixou a terra solta. Acho que foi um teste que fizeram."
Para ela, mudar do morro está fora de cogitação. "Prefiro viver aqui do que no apartamento que a prefeitura fez na Vila Albertina. É muito gostoso morar aqui."
A verdade é que todo ano, na época das chuvas, é um sobressalto. Todo ano, o município é colocado em estado de emergência ou de alerta. Foi assim em 2001, 2002, 2003, 2004... Este ano, a chuva não deu trégua e deixou 2.500 moradores de área de risco de cabelo em pé. Cinco bairros e 600 casas do municípios foram monitorados diariamente por equipes da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros. Paredes racharam e o solo ficou encharcado. Mas, como disse Eunice, chuvas como a de 2000, nunca mais. R.B.

Um barraquinho novo por semana
Defesa Civil mandou Terezinha, mãe de 9 filhos, deixar morro e ir para a casa de parentes. Como não tem família na cidade, ela ficou
Rosa Bastos
Basta prestar atenção nos sotaques. Nas encostas de Campos do Jordão vivem mineiros, nordestinos, sulistas. "Na Cachoeirinha e Brejo Grande tem o mapa do Brasil", diz Tioni José de Melo, presidente do Conselho Municipal das Associações de Moradores, referindo-se a pontos duplamente perigosos. São cheios de barrancos e a água disponível está contaminada - numa área de proteção ambiental.
O local das duas invasões fica ao lado da Vila Paulista Popular, que tem mais de 300 casas e mil famílias. "Todo fim de semana surge um barraquinho novo." Quando chove, ali não passa carro, por causa do barreiro. Nem ambulância. "Aí, o pessoal da prefeitura chega e diz: Sai desse morro que você vai morrer. E o morador responde: Tá bom, então vou pra onde? É complicado."
A casa de Carina Eleutério Mendes, de 19 anos, dois filhos, fica na beira de um barranco, a 1,5 metro do espaço de outra que desmoronou, em janeiro. "E foi uma chuvinha de nada. Quando a gente viu, tinha rolado lá embaixo." O dono estava trabalhando. Voltou e achou o vazio. "Eu tenho medo de morar aqui", diz Carina. "Quando chove, não durmo, abraço meus filhos e espero." Ela diz que nunca apareceu um fiscal da prefeitura para "conscientizar". "Mas, se vier, não saio." Terezinha Fátima da Silva Melo, de 38 anos, nove filhos, também se apavora quando o barranco começa a ceder. "Veio a Defesa Civil e mandou ir para a casa de parentes", conta. Como ela não tem parentes na cidade, ficou.
Quinta-feira, o geógrafo Artur Rosa Filho, de 39, doutorando na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, subiu o morro Britador. Aquele onde dezenas de casas despencaram nas chuvas de 2000. Bem no centro e perto do mercado e da prefeitura, o Britador compõe a moldura da cidade.
O pesquisador levou prancheta e caneta na mão para entrevistar moradores. Queria levantar dados para a sua tese de doutorado: percepção geográfica de deslizamento de encostas em favelas em área de risco em Campos. "Quero entender se o pessoal percebe o risco de morar aqui e também como vê o Festival de Inverno. Quando se fala em Campos do Jordão, só se pensa em Capivari, mas Campos também é isso aqui", diz.
No Britador, na Vila Santo Antonio e no Jardim Monte Carlo o pesquisador ouviu um rosário de queixas. A principal delas: a falta de água potável. Pouco se importam se a casa pode cair. Sem água é que não dá para ficar. Mas como o caminhão-pipa só vai uma vez por semana, recorrem a poços para lavar roupa. Resultado: as crianças estão cheias de alergias e coceiras. Para banhá-las, vão até a casa de parentes em outros bairros. E a insalubridade é terrível: as crianças vivem gripadas ou com pneumonia.
CADASTRO
"Se tem luz e telefone por que não tem água?", pergunta Glaziele Cristina da Silva, de 23, dois filhos. É ordem do Ministério Público, para obrigar os moradores a saírem da área de risco. Assim que o novo prefeito, João Paulo Ismael (PMDB), assumiu, há seis meses, foram fazer cadastro. "Perguntam o que a gente faz e quanto ganha. O financiamento vai ser pela Caixa. Meu marido ganha R$ 428,00 na carteira. Quando que a Caixa vai aprovar um financiamento? A gente tem cinco cadastros. Para que mais um, se não tomam providência?" "A gente não tem medo do barranco", diz Elisangela Aparecida Oliveira de Almeida, de 23, dois filhos. "O maior horror é viver sem água." O marido dela trabalha num hotel, em Capivari. Ganha R$ 447,00. "Entra prefeito, sai prefeito, e a gente não sai da estaca zero."
A diarista Maria Aparecida Pinto, de 32, quatro filhos, o mais velho com 12 e o menor com 1 mês, recorre ao poço e ao caminhão-pipa. Que vai uma vez por semana, mas, às vezes leva até dez dias para subir o morro. E, assim mesmo, depois de vários ofícios na prefeitura. Dois filhos dela estão com alergia. "É a água." Maria Aparecida vive no Britador há 12 anos e detesta. "Estão fazendo predinho, mas ninguém aqui do bairro foi sorteado. Eu gostaria de mudar por causa das crianças e do barranco. Mas, se ligasse a água, já melhorava bastante."
O lugar onde Adriana Cecília Beraldo, de 24, morava com o marido e cinco filhos era praticamente sob uma gruta, no Britador. Com os deslizamentos de 2000, a casa foi derrubada. Eles moraram três meses de aluguel e, baixada a poeira, voltaram para o morro. Vivem numa casa de cinco cômodos, escura, úmida e na beira da encosta. Gostariam de morar num lugar seguro, mas o marido dela só conseguiu trabalho agora, na temporada. Fora isso, recebem R$ 90,00 de uma bolsa do governo. "Como pagar prestação de apartamento com essa renda?" Jamais Adriana desce para passear em Capivari. "Não saio de dentro de casa. A gente se sente como estranho ali. Os turistas parecem ser mais do que a gente na cidade da gente."
Pessoas como Rosália Ferreira Quitara, de 58, contudo, não querem mudar de lá por nada neste mundo. A primeira casa que ela e o marido, marceneiro, construíram no Britador, há 50 anos, era de lata. Hoje, têm uma sólida, de alvenaria, com grande área cimentada em volta, quaresmeira e duas hortas.
Além do casal de gêmeos que teve, Rosália criou quatro filhos dos outros, que botavam na porta de sua casa ajeitada, com carro e tudo, uma Brasília verde. O mais novo, Gabriel, tem um quarto forrado, ensolarado e com vista estupenda. Quando o prefeito a chamou para uma reunião, até passou mal. "Daqui só saio para o cemitério."

OESP, 17/07/2005, p. C1, C3-C4

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