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O inesperado rosto na floresta

O Globo, Ciência e Vida, p. 50
06 de Ago de 2006

O inesperado rosto na floresta
Uma história de idealismo e ciência que salvou o maior macaco das Américas

Míriam Leitão e Sergio Abranches

Tudo nessa história é inesperado. Um rico fazendeiro que abre mão do lucro para preservar mata e macacos e os protege, até à bala quando necessário, numa era em que um insensato Brasil punha abaixo a Mata Atlântica. Uma doutoranda de Harvard que desembarca em Caratinga no começo dos anos 80, se embrenha na mata e revoluciona a primatologia. O neto do fazendeiro que continua o sonho do avô nas poucas folgas que tem no emprego de piloto na Arábia Saudita. Um jequitibá e um macaco que morrem de tristeza. E mais impressionante: um grupo de primatas que não briga por comida ou fêmea, vive em harmonia, dividindo uma dieta vegetariana de flores e frutas.

É preciso seguir o fio condutor, que começa nos anos 40, quando um imigrante libanês com seu filho Feliciano caminhava com mulas cheias de mercadorias pelas trilhas do interior de Minas. O libanês Miguel Abadalla era tropeiro; já Feliciano Miguel, seu filho, quis se estabelecer. Escolheu investir o dinheiro guardado na bela Fazenda Montes Claros em Caratinga. No dia de fechar o negócio, seu Benzinho, o antigo dono, impôs uma condição: vendia apenas se o novo dono jurasse proteger a mata.

'Poluição é progresso'

Esse era o ano de 1944 e Caratinga era uma fronteira onde desembarcava gente de todo lado; terra selvagem onde muitas vezes as disputas eram decididas a bala. Depois vieram os anos 50 do desenvolvimento a qualquer preço, os anos 60 e 70 em que o governo tinha o anúncio "Poluição é progresso". Feliciano Miguel Abdalla cumpriu a palavra dada. Sozinho defendeu a mata que cobre dois terços da sua fazenda, no resto plantou café, criou gado. Durante todos aqueles anos ele fechou os ouvidos para os amigos e supostos especialistas que diziam que ele deveria "limpar" toda aquela floresta e plantar café. Nesse meio tempo, quase toda a Mata Atlântica foi derrubada. Mas de pé ficaram as árvores do Feliciano. Ele tinha os ouvidos abertos apenas para captar os barulhos de caçadores na mata. Quando os ouvia corria atrás com suas armas e os espantava a tiros.

A cidade via como esquisitice a briga de Feliciano para proteger sua mata e seus macacos. Das várias espécies que viviam nos 900 hectares de mata, uma conquistou a predileção do dono da fazenda: os muriquis do norte ou monocarvoeiros. Viraram, para a cidade, "os macacos do Feliciano".

Um dia, no final dos anos 70, chegou um pesquisador, Álvaro Aguirre, da UFMG. Depois, o professor Célio Valle. Eles foram revelando a dimensão do que fora feito. Feliciano havia preservado, com sua coerente teimosia, um tesouro para a ciência e o ambientalismo: a maior e mais viável população do maior macaco das Américas. Da ponta dos seus braços esticados à ponta dos pés, eles chegam a medir um metro e meio. A espécie, extremamente ameaçada, começou a ser conhecida fora do país quando o presidente da Conservação Internacional, Russel Mittermeier, promoveu o vídeo "O Choro do Muriqui", um emocionante apelo pela proteção da espécie. A gravação do vídeo, nos EUA, foi ouvida por uma aluna, Karen Strier, que fazia seu doutorado em Harvard.

Agonia da mata ameaça muriqui

Ela veio estudar os muriquis e mudou o paradigma da primatologia que tinha como estabelecida a tese da agressividade, da dominância do macho e das disputas territoriais. Atraídos pelos estudos dela e por um congresso no Brasil, os maiores primatologistas do mundo acamparam no pátio da casa do Feliciano. O homem, que a cidade não entendia, estava sendo compreendido, naquele começo dos anos 80, pela nata da ciência mundial.

Ele ajudou a ciência a revelar um primata diferente: extremamente pacífico, seus grupos vivem sem hierarquia, sem dominância masculina, com explícitas demonstrações de afeto entre eles. As fêmeas trocam de parceiro, mas nunca copulam com os filhos, aos quais vivem grudadas até eles terem dois anos. São elas que migram na adolescência para outros grupos.

O estudo da Karen tem outro inesperado. Além das revelações interessantes, a persistência dela e seu esforço têm mantido mais de 20 anos de pesquisas com bolsistas do Brasil e do exterior, que estão chegando a novas revelações interessantes sobre esses carismáticos primatas. Mais estudados, eles ficaram mais protegidos e o grupo começou a crescer, mas agora está chegando no limite que o fragmento da mata pode oferecer. A agonia da um dia exuberante Mata Atlântica é a morte certa para eles. Lá é o único lugar em que os muriquis sobrevivem. E eles são um dos seus principais dispersores: as sementes que passam pelos seus intestinos germinam, o pólen das flores que comem são espalhados pelos seus corpos.

Sua linha de pesquisa é diferente. Ela não toca nos macacos, não os captura para marcar ou tirar sangue. Os pesquisadores apenas coletam fezes para estudos de DNA. A vantagem dos muriquis é que eles têm uma despigmentação no rosto que é uma espécie de impressão digital. Cada indivíduo tem uma marca única. Para estudá-los ela pôs nomes. O mais velho tinha lábios leporinos, e ela o chamou de Cutlip, lábio cortado.

Feliciano Miguel Abdalla morreu em 2000, aos 92 anos. Seu legado foi protegido pela mulher Palmira e pelos filhos. Ele havia doado uma parte da Fazenda para ser instalada a Estação Biológica onde ficam os pesquisadores. Seus descendentes transformaram a mata em RPPN, Reserva Particular do Patrimônio Natural, numa prova do compromisso com o sonho. O neto, Ramiro Abdalla Passos, de profissão piloto, e que só encontrou na remota Arábia Saudita um emprego estável, gasta suas vindas a cada dois meses ao Brasil para continuar o trabalho de proteção através da ONG Preserve Muriqui. Karen escreveu trabalhos técnicos que viraram livro-texto da primatologia. E um texto fácil de ser lido por leigos: "Faces in the forest", que está sendo traduzido pela Preserve Muriqui.

Quando recebia alguém na fazenda, Feliciano tinha uma mania: levava o visitante para conhecer a sua árvore favorita, um jequitibá. Soberana da mata, a árvore de 50 metros e duzentos anos era um magnífico exemplo da exuberância da Mata Atlântica. Foi lá que, em entrevista à TV Globo, mais de dez anos atrás, ele explicou de onde veio sua sabedoria ambiental: do pai libanês.

- Meu pai sempre me dizia que tivesse cuidado com as matas, as madeiras, porque o fim disso seria trágico. Aquilo gravou na minha memória e eu tornei-me um conservador praticamente de berço. O que me preocupa é minha idade avançada, mas meus filhos vão continuar a minha defesa que eu fiz até o momento presente.

Dias depois da morte de Feliciano, Cutlip apareceu morto, morte natural. E, do nada, tombou, sem causa aparente, o belo e frondoso jequitibá. Ele está lá caído e impressiona quem quiser ver que essa história, além de inesperada, tem também seus mistérios.
Especial para O GLOBO

O Globo, 06/08/2006, Ciência e Vida, p. 50

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